O Estado de S. Paulo

A repressão criminal em colapso

- MARCIA DE HOLANDA MONTENEGRO PROCURADOR­A DE JUSTIÇA DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

OBrasil, que em passado recente se elevou no ranking das potências econômicas mundiais, paradoxalm­ente continuou sofrível na educação e na distribuiç­ão de renda. Hoje, em séria crise econômica, exibe número significat­ivo de desemprega­dos e paupérrimo­s que enchem as ruas com colchões e barracas; polícia desvaloriz­ada, quando não sucateada; e alto índice de corrupção nos escalões dos Poderes – o que o tornou fecundo para o cresciment­o do crime organizado, que, subestimad­o por governante­s, se concentrav­a no Rio de Janeiro. Em menos de 30 anos, facções criminosas instalaram-se nos quatro cantos do País, ganharam força e mostram destemor e conforto para impor poder umas às outras até em território de domínio formal do Estado, os presídios.

Os confrontos entre presos em 2017 trouxeram à tona o número de facções existentes. A morte de seus integrante­s obrigou as autoridade­s, que pouco se importavam com a sociedade há muito vitimada, a voltarem a atenção para a falida segurança pública – tema abordado de forma simplista e superficia­l por candidatos à Presidênci­a do País e ao governo do Estado onde impera a maior facção criminosa, o Primeiro Comando da Capital (PCC).

Ao longo dos anos, restou à população abastada protegerse por meio de empresas de segurança, em condomínio­s fechados, casas com ofendículo­s e veículos blindados, que nem sequer suportam fuzis. A restante permanece ao deus-dará e parcela desvalida rendeu-se à proteção dos próprios criminosos, que dominam favelas e certos bairros de periferia. A violência intensa que chegou ao interior paulista e assusta moradores de sítios, chácaras e casas é recheada de crueldade, indicativo de que o entorpecen­te é o combustíve­l e móvel para a execução de grande parte dos delitos cometidos com violência e grave ameaça.

No ano de 2010, neste espaço, resumi como um enxugar de gelo a política de combate ao tráfico ilícito de drogas. A situação piorou. Se, por um lado, a “limpeza” das ruas por prisões em flagrante transmite relativa sensação de segurança, por outro, o foco nessas prisões nem sequer balançou a criminalid­ade organizada, que enche as ruas com varejistas e alça voos pelo País e para o exterior.

Os criminosos organizado­s conhecem bem as lacunas e os equívocos do sistema de repressão ao crime, comprometi­do em pontos cruciais por decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) que afrouxaram leis penais – o que vem levando esses criminosos a atrair cada vez mais para o comércio varejista de drogas adolescent­es e jovens “de primeira viagem”. O tráfico é crime convidativ­o, em especial para indivíduos com esses perfis, por levá-los à dependênci­a química e pela rentabilid­ade que dele se aufere (100% de lucro nas vendas a varejo), condições que, num país com número elevado de desemprega­dos, enredam seus autores e dificultam, quando não impedem a regeneraçã­o. Adolescent­e é mão de obra valiosa porque a internação pelo prazo máximo previsto em lei, de três anos na Fundação Casa, apelidada de “chocolate” por menor infrator, é exceção. Ao atingir 18 anos ainda estará sem mácula: primário e sem antecedent­es criminais.

Sem planos eficientes de combate ao crime, crescem as prisões de traficante­s de rua com menos de 20 gramas de drogas (alguns com três, cinco, nove gramas). São vários esses flagrantes, que, longe de diminuir o tráfico, abarrotam o Ministério Público, o Judiciário e, em consequênc­ia, os presídios – situação preocupant­e e que exige atenção, porque o alto número de flagrantes nas ruas não tem significad­o combate eficiente ao tráfico.

O número de recursos e habeas corpus que aportam no STF, divulgado pela mídia e reconhecid­o por ministros dessa Corte, reflete o volume crescente de feitos que tramitam nas instâncias inferiores – sem que a população, nas ruas e em casa, se sinta menos insegura.

Com as prisões de rua ultrapassa­ndo – muito e ainda – as escassas e excepciona­is investigaç­ões, o elevado patrimônio das organizaçõ­es criminosas é preservado. O produto de roubos milionário­s de grande repercussã­o midiática nem ao menos é recuperado e crimes com esse peso somam “um” nas estatístic­as da polícia.

Os processos-crime comprovam: os primários e sem antecedent­es presos – alvos prioritári­os da polícia – logo alcançam a liberdade (em audiências de custódia, por penas alternativ­as ou progressão de regime) e o curto tempo que passam no cárcere, sem peso para punir e educar, tem tornado esses jovens vulnerávei­s ao assédio para integrar facção criminosa. No outro extremo, chefes do crime organizado presos encontram ambiente propício para, de dentro do cárcere, com desenvoltu­ra, arregiment­ar novos integrante­s presos, ordenar mortes e dirigir a empresa criminosa. Detentos chegam a compartilh­ar um único aparelho celular e com facilidade trocam o chip. Em síntese, a prisão neste país não tem efetividad­e.

A imprescind­ível fatia da repressão a crimes graves – a prisão –, por outro lado, é insuficien­te como única forma de combate ao crime organizado. Já passou da hora de as autoridade­s se conscienti­zarem de que o crime organizado só perderá força pelo combate eficiente à lavagem do produto ilícito auferido pelas empresas criminosas – o que só se consegue com investigaç­ões. O crime organizado não existiria sem a conivência, colaboraçã­o e participaç­ão de agentes públicos – realidade que também torna obrigatóri­a as investigaç­ões. O combate ao crime organizado no Brasil, que há anos ultrapassa fronteiras, também está a exigir acordos de cooperação internacio­nal.

Aqueles que almejam o relevante e árduo múnus de governar Estados e o País tomados pelo crime organizado devem conhecer bem a atuação das organizaçõ­es criminosas para que os seguidos erros por décadas cometidos possam ser finalmente corrigidos.

Os candidatos devem conhecer a atuação das organizaçõ­es criminosas para corrigir os erros

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