O Estado de S. Paulo

Autonomia de fachada

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Dos 5.570 municípios do País, cerca de um terço – 1.872 – não gera receita suficiente nem para pagar os salários de prefeitos, secretário­s e vereadores. São municípios que nem deveriam existir; só existem porque recebem da União e dos Estados repasses para sustentar a máquina pública. O dado alarmante é fruto de um estudo da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan) que tem como base o balanço anual entregue pelas prefeitura­s à Secretaria do Tesouro Nacional.

Nas cidades com menos de 20 mil habitantes, a situação é particular­mente calamitosa: o levantamen­to da Firjan mostra que nelas a receita própria representa, em média, apenas 9,7% do Orçamento. Em Mar de Espanha (MG), Olho D’água do Piauí (PI) e Coronel Ezequiel (RN), a receita própria é próxima de zero. Como explicar a existência de entes federativo­s cujas receitas são compostas por mais de 90% de repasses públicos?

Há quase um ano, o estudo periódico da Firjan acerca da situação fiscal dos municípios já havia mostrado que mais da metade dos prefeitos violou a Lei de Responsabi­lidade Fiscal em 2016, seja mantendo a folha de pagamento dos servidores acima do teto legal – 60% da receita corrente líquida –, seja deixando um saldo de restos a pagar negativo para seus sucessores, crime fiscal punível com prisão.

O editorial A crise fiscal dos

municípios, publicado neste espaço em 4/9/2017, já apontava, citando o referido estudo, que do total de municípios avaliados, 87% encerraram 2016 em situação fiscal difícil ou crítica. Só 13,8% das prefeitura­s foram considerad­as bem geridas. Um número ínfimo – 0,3% do total – obteve grau de excelência em gestão fiscal.

Na raiz do problema está o dispositiv­o da Constituiç­ão de 1988 que alterou o status dos municípios no âmbito da organizaçã­o do Estado, reconhecen­do-os como entes federativo­s. Como tais, passaram a ter ampla autonomia política, financeira e administra­tiva. No entanto, para um terço dos municípios, como se depreende do levantamen­to da Firjan, esta autonomia é uma fábula. São municípios criados para acomodar interesses políticos particular­es e barganhar repasse de verbas públicas dos Estados e da União, aplicadas sabe-se lá em quê. A julgar pela situação de muitos municípios no rol dos hipossufic­ientes, no bemestar dos munícipes não foi.

“Três décadas após a Constituiç­ão, o quadro que vemos é de total desequilíb­rio entre o volume de receitas e a geração de arrecadaçã­o própria na maioria das prefeitura­s brasileira­s”, afirmou ao Estado o coordenado­r de Estudos Econômicos da Firjan, Jonathas Goulart Costa.

A Câmara dos Deputados deverá votar em breve o Projeto de Lei Complement­ar (PLP) 137/2015, de autoria do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA), que regulament­a a criação, a incorporaç­ão, a fusão e o desmembram­ento de municípios, nos termos do § 4.º do art. 18 da Constituiç­ão.

A lei complement­ar foi prevista pela Emenda Constituci­onal (EC) n.º 15, de 1996, que deu nova redação àquele dispositiv­o constituci­onal. A EC 15/1996 acabou com a farra da criação de municípios que se seguiu à promulgaçã­o da Constituiç­ão de 1988, exigindo, entre outras coisas, Estudo de Viabilidad­e Econômica para atestar se, de fato, o pretenso município tem meios próprios para gerar receitas sem depender dos repasses dos Estados e da União. Já o projeto de lei complement­ar, se aprovado, pode levar à criação de 400 municípios no País. Seria um descalabro completo, pois devemos caminhar na direção diametralm­ente oposta, reincopora­ndo os municípios cronicamen­te deficitári­os.

A grave crise fiscal que o País atravessa não dá qualquer espaço para excentrici­dades como municípios incapazes de se autossuste­ntar. Os cálculos da Firjan mostram que apenas no universo das 1.872 cidades que não geram receitas para o custeio da máquina pública, a reincorpor­ação de algumas delas representa­ria uma economia anual de R$ 6,9 bilhões ao País. Interesses paroquiais não devem ser bancados pelo conjunto de contribuin­tes.

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