O Estado de S. Paulo

Rastros de Machado

‘La Traviata’ e irmão de José de Alencar ajudam a desvendar origem da tradução de ‘Maria Duplessis’ por Machado de Assis

- Maria Fernanda Rodrigues

A estreia de La Traviata no Rio de Janeiro, em 1855, é a chave para desvendar um dos muitos mistérios que cercam o jovem Machado de Assis (1839-1908) – neste caso, a fonte usada por ele na tradução do poema Maria Duplessis, que os pesquisado­res nunca conseguira­m descobrir já que Machado traduziu apenas 16 estrofes quando o original de Alexandre Dumas Filho tinha 22. Portanto, não foi no poema original em francês que ele se baseou.

A ligação entre o texto de Dumas Filho, que foi o embrião da ópera em questão, a montagem dela no Brasil e a versão de Machado foi feita agora pelo professor Wilton José Marques, da UFScar. Sua pesquisa esclarece também uma confusão causada pelo próprio autor relacionad­a à data de publicação desse texto e as circunstân­cias de sua publicação. E, para entender os detalhes dessa história, é preciso acompanhar Wilton Marques em sua investigaç­ão.

Machado estreou na literatura com Crisálidas em 1864. Entre os poemas, encontramo­s Maria Duplessis com a data de 1859 e uma nota dizendo que em 1858 ele e o amigo Francisco Gonçalves Braga, poeta português, se reuniram para confrontar suas traduções do mesmo poema. Diz, nessa nota, que Braga tinha publicado a dele num jornal, do qual ele não se lembrava o nome, e omite que ele publicou a dele no Diário do Rio de Janeiro, em abril de 1860 (veja a reprodução acima), pouco depois da morte precoce do amigo. Era o pouco que se sabia sobre essa obra.

Em sua pesquisa, Marques busca entender como se deu o processo de formação literária do jovem Machado, sobretudo entre 1854, quando ele publica seu o primeiro poema, no Periódico dos Pobres, e 1860, quando entra no Diário do Rio de Janeiro e sua vida passa a ser mapeada.

“Nesse período, ele foi essencialm­ente poeta e publicou cerca de 50 textos – e os abandonou quando lançou Crisálidas”, comenta Marques ao Estado. Foi o professor, aliás, quem descobriu, em 2016, que Machado ia reunir seus primeiros escritos no Livro dos Vinte Anos. O lançamento chegou a ser anunciado pela imprensa, mas a obra nunca saiu. E foi ele também quem encontrou O Grito do Ipiranga, um poema desconheci­do do autor de Dom Casmurro, que saiu no Correio Mercantil em 1856.

Mas voltemos à história rocamboles­ca envolvendo Maria Duplessis. Cortesã francesa, Duplessis foi inspiração para Alexandre Dumas Filho escrever o poema M.D. em 1847. Ele tinha 23 anos. No ano seguinte, ela voltaria a aparecer na obra do jovem escritor francês e seria imortaliza­da como Marguerite Gautier no romance A Dama das Camélias.A

obra virou peça em 1852, do próprio autor, e ópera de Giuseppe Verdi em 1853 – em La Traviata,

Duplessis vira Violetta Valéry.

A montagem de La Traviata

no Brasil foi um acontecime­nto. Nas palavras do novo folhetinis­ta do Diário do Rio de Janeiro,

a noite do dia 15 de dezembro de 1855 foi “a mais bela noite do teatro do Rio de Janeiro”. Leonel de Alencar escreveu isso no texto que abria a seção Livro do Domingo, criada em substituiç­ão à coluna Ao Correr da Pena,

de seu irmão famoso, e mais ocupado, José de Alencar.

Na semana seguinte, no dia 30 de dezembro, ele se dedicou a contar como tinha sido a tal noite – promessa assumida no texto de estreia. Falou dos bastidores, do clima na cidade, da reação do público. E se pôs a falar sobre Maria Duplessis. Para ajudá-lo na tarefa, recorreu ao artigo Marie Duplessis ou La Dame aux Camelias,

publicado por Alexandre Dumas Filho em seu jornal Le Mousquetai­re em abril daquele mesmo ano. No final desse artigo, Dumas transcreve­u o poema M.D.,

que Leonel de Alencar traduziu “à pressa, metrifican­do a prosa”.

Talvez essa pressa justifique o erro, que também pode ter sido reforçado por um erro de composição tipográfic­a do jornal. Como ressalta Wilton Marques, ele traduziu, em prosa, 17 das 22 estrofes originais e inverteu a ordem da 7 e da 8.

Naquele final de 1855, Machado de Assis tinha 16 anos e era muito próximo de Francisco Gonçalves

Braga, 19. Tudo indica que o encontro de 1858 a que Machado se refere em Crisálidas, quando a dupla ‘traduziu livremente’ Dumas Filho e comparou o resultado, tenha ocorrido na virada de 1855 para 1856. Isso porque o leitor do mesmo Diário do Rio de Janeiro

encontra, na edição de 21 de janeiro do ano seguinte, o poema Maria Duplessis (A Transviada) – Por A. Dumas Filho. No rodapé, a anotação do ‘tradutor’: “metrificad­o por F. Gonçalves Braga. Côrte. 31 de dezembro de 1855”.

Francisco Gonçalves Braga foi um nome recorrente nas pesquisas de Marques quando, depois de descobrir O Grito do Ipiranga,

ele decidiu investigar mais a fundo o início da trajetória literária de Machado. “Estudei alguns poemas do Braga que dialogavam com a poesia do Machado, e também o livro de estreia do português, Tentativas Poéticas (1856)”, conta. Entre os poemas de Braga, encontrou a tradução de Maria Duplessis, publicada, no mesmo ano, no jornal e no livro.

Wilton sabia que o poema também aparecia no livro de estreia de Machado e voltou à ele, sobretudo por causa da nota final que o acompanha, referente ao tal exercício de tradução feito pelos amigos.

“O estranhame­nto veio com a dupla afirmação machadiana de que ele e Braga fizeram as respectiva­s versões em 1858 e que a de Braga tinha sido publicada em um jornal que o Machado não se lembrava. Foi a partir daí que resolvi investigar com mais calma, sobretudo porque tanto JeanMichel Massa quanto Galantes de Sousa escreveram sobre essa tradução machadiana, explicitan­do que nunca encontrara­m a fonte usada por ele”, comenta o professor.

E completa: “Como existem semelhança­s entre a versão dos dois, fui procurar nas fontes. Já que na publicação em jornal do Braga havia a referência ao dia 31 de dezembro de 1855, conjecture­i que, por meio dos próprios jornais, poderia tentar a sorte, rastreando a possível fonte usada. Foi aí que apareceu a tradução do poema em prosa feita pelo irmão do José de Alencar”. Um problema resolvido.

Machado e Braga se afastam por volta de 1858, não se sabe exatamente o motivo. O português morre em 1860. Um mês depois, Machado, talvez em homenagem a quem tanto o influencio­u tempos antes, publica Maria Duplessis (A Dama das Camélias) – Imitação de Alexandre Dumas Filho.

Quatro anos tinham se passado desde a estreia de La Traviata, do folhetim de Leonel de Alencar e da ‘tradução’ de Braga. Pode ser que Machado tenha tido acesso ao original de Dumas Filho nesse período, mas no texto publicado faltam as mesmas estrofes que faltavam nas versões de seus antecessor­es – o que só reforça a tese de que a fonte de Braga e de Machado foi Alencar. Com um detalhe: o autor fez a sua com 16 estrofes. Para o pesquisado­r, que vai publicar essa história em artigo na revista Machado de Assis em Linha,

em dezembro, a exclusão talvez possa ser explicada por pudores morais do poeta adolescent­e ou simples decisão estética.

Ao montar esse quebra-cabeça todo, Marques passou a defender que Maria Duplessis foi o primeiro poema traduzido por quem, mais tarde, se tornaria célebre por verter, entre outros Edgar Allan Poe – sua versão de O Corvo é comparada à de Fernando Pessoa. Segundo Jean-Michel Massa, um dos principais estudiosos de Machado, citado por Marques em seu artigo, ele foi tradutor entre 1857 e 1894. Seu primeiro trabalho teria sido com A Ópera das Janelas, da qual não se tem notícia a não ser por uma menção da comissão de censura do Conservató­rio. E a história contava que o primeiro poema traduzido publicado saiu em 1859. Com a possibilid­ade de Maria Duplessis ter sido feito por Machado na virada de 1855 para 1856, ele se tornaria, assim, para o pesquisado­r, o primeiro poema traduzido “bem entre aspas”, porque feito do português, por Machado de Assis.

MACHADO TINHA 16 ANOS QUANDO ‘TRADUZIU’ O POEMA, DIZ PESQUISADO­R

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BIBLIOTECA NACIONAL O começo. Machado de Assis (E), trecho do folhetim de Leonel de Alencar, de 1855 (ao lado), e versão de Machado, de 1860 (D)
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REPRODUÇÕE­S DIÁRIO DO RIO DE JANEIRO

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