O Estado de S. Paulo

Uma prática da ausência

Paulo Henriques Britto volta à poesia e às formas fixas depois de seis anos com ‘Nenhum Mistério’

- Guilherme Sobota

Paulo Henriques Britto construiu uma carreira de homem das letras em várias frentes: tradutor renomado (Wallace Stevens e Elizabeth Bishop, para ficar em exemplos recentes na centena de livros que levam seu nome nos créditos de tradução), professor universitá­rio da PUC-Rio, mas também escritor e poeta premiado. Nenhum Mistério, que a Companhia das Letras lança agora, é o seu sétimo livro de poemas, e chega seis anos depois do mais recente,

Formas do Nada, de 2012. Partidário das formas fixas, Britto explica que as utiliza porque elas facilitam o trabalho “muitíssimo”. Em poemas que passeiam entre questionam­entos e colocações sobre ausência e perda, busca por sentidos do presente e especulaçõ­es sobre o prazer estético, o escritor oferece uma potente reunião de textos em versos.

Foram seis anos desde o último livro de poemas. A poesia, para você, tem de necessaria­mente passar por um processo longo de maturação? O que ela ganha com isso? Demoro para publicar porque escrevo pouco e porque de fato passo muito tempo reescreven­do cada poema; são relativame­nte raros os que já saem quase prontos. O processo de reescrita tem vários objetivos: expurgar os clichês, eliminar as redundânci­as, tensionar a forma, essas coisas. Talvez o mais importante: me distanciar do momento em que o poema foi escrito e voltar a ele quando já estou com a cabeça em outro lugar, para ver o poema com um olhar ao menos um pouco mais próximo do olhar de um outro leitor.

Como a qualidade semântica do título do livro se relaciona com os aspectos formais dos poemas? (No sentido de: não há nenhum mistério na métrica da forma fixa. É isso?) Na verdade, o título do livro (que também dá nome a uma das séries de poemas incluídas) e o título de uma outra série, Nenhuma Arte, ambos aludem a um poema de Elizabeth Bishop — ou, mais exatamente, à minha tradução desse poema, intitulado One Art.

É um poema sobre a perda, o tema principal do meu livro. Na minha tradução, o verso inicial ficou assim: “A arte de perder não é nenhum mistério”. A escolha contínua pela forma fixa é uma forma de se rebelar (mesmo que privadamen­te, dentro do seu campo de trabalho poético) contra o modernismo? Qual é a motivação?

Não tenho nenhuma intenção de me distanciar do modernismo. Muito pelo contrário: os poetas que mais me ensinaram foram justamente os modernista­s – Bandeira, Drummond, Cabral e sobretudo Pessoa, entre os de língua portuguesa. Foi com eles que aprendi a usar recursos como o decassílab­o e o soneto de uma maneira criativa, não tradiciona­l. Fora umas poucas exceções, como Gonçalves Dias e Cesário Verde, só comecei a ler a sério os poetas lusófonos anteriores ao modernismo quando já tinha mais de vinte anos. O motivo principal que me leva a recorrer a formas mais ou menos fixas é minha dificuldad­e de usar o verso livre. (Aliás, o verso livre tem sido um dos meus principais temas de pesquisa nos últimos anos na PUC-Rio). Nas mãos de poetas como os que citei acima, o verso livre leva a resultados magníficos; mas, para mim, é difícil fazer alguma coisa apresentáv­el em formas livres; o uso de métrica, rima, estrofação regular facilita o trabalho muitíssimo.

Como essa última resposta se conecta com a sua avaliação da produção poética contemporâ­nea no Brasil?

Não sei muito bem como conectar as respostas às duas perguntas. Mas, há alguns anos, venho lendo de modo mais ou menos sistemátic­o boa parte da poesia que se produz no Brasil no momento (quer dizer, só o que sai em livro; não acompanho blogues de poesia nem a poesia oral, duas áreas de intensa atividade). Como em qualquer época, a maior parte dessa produção é de qualidade mediana – é essa a própria definição de “mediano”, afinal – mas há vários poetas excelentes em atividade no Brasil (e também em Portugal, ainda que eu não acompanhe a poesia portuguesa de modo tão assíduo quanto faço com a produção brasileira). Alguns desses poetas são mestres das formas livres: Armando Freitas Filho, Claudia Roquette-Pinto, Carlito Azevedo e Edimilson de Almeida Pereira, para citar apenas quatro.

“pois não há teoria – / só práxis – da ausência”, diz um dos versos finais da série inicial. O livro tem toda uma carga temática relacionad­a à perda, à ausência. De qualquer forma, essa frase tem um pouco de paradoxo, pois, ao afirmar que a teoria da ausência não existe, ela acaba se fazendo, no poema... A poesia pode preencher alguma ausência? Qual (ou quais)?

Eu não diria que a poesia – quer dizer, a poesia lírica – está do lado da teoria, e sim do lado da prática. Ao contrário da escrita ensaística, a escrita poética não visa explicar nem generaliza­r, porém é autotélica e se concentra no individual, subjetivo e momentâneo. Também não preenche nenhuma ausência. Ela no máximo proporcion­a prazer estético, coisa diversa do tipo de gratificaç­ão que só pode ser proporcion­ada por outros seres humanos.

A série de poemas ‘Nenhum Mistério’ teve, na minha leitura, uma alta carga política (“não há mistério nenhum nessa história / em que o culpado se anuncia / ainda na primeira hora (...)”). Os poemas no livro se relacionam mais diretament­e com algum acontecime­nto político, social ou histórico do Brasil (pelo menos na sua concepção)?

Na verdade, os poemas dessa série trabalham com sentimento­s subjetivos de angústia, frustração, impotência. Mas, embora eu não estivesse pensando na situação atual quando escrevi esses poemas, são justamente esses os sentimento­s despertado­s em mim pelo momento que vivemos no Brasil. De modo que pode até haver uma relação, ainda que indireta, entre essa série e a realidade atual do País.

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RENATO PARADA/COMPANHIA DAS LETRAS Britto. Além de poeta e escritor, é professor e nome forte da tradução do inglês no Brasil
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NENHUM MISTÉRIO Autor: Paulo Henriques Britto Editora: Companhia das Letras (72 p., R$ 44,90, R$ 29,90 o digital)

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