O Estado de S. Paulo

Crise de 2008 ainda deixa lições a serem aprendidas

Países precisam resolver lacunas, como o redesenho de hipotecas; aumento do populismo também traz risco para o euro

- TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Quando os historiado­res olharem para o início do século 21, identifica­rão dois choques sísmicos. O primeiro se deu com os ataques terrorista­s de 11 de setembro de 2001; o segundo, com a crise financeira global, que irrompeu violentame­nte há dez anos completado­s este mês, com o colapso do Lehman Brothers. O 11 de setembro resultou em guerra. A falência do Lehman, resultou em um ajuste de contas econômico e político. Assim como a luta contra o terrorismo ainda continua, o ajuste de contas está longe de terminar.

O Lehman faliu depois de perder dinheiro com empréstimo­s tóxicos e títulos ligados ao mercado imobiliári­o americano. Sua falência desencadeo­u o caos. O comércio caiu em todos os países acompanhad­os pela Organizaçã­o Mundial do Comércio (OMC). O crédito fornecido à economia real caiu, em cerca de US$ 2 trilhões só nos Estados Unidos. Para conter o endividame­nto, os governos recorreram à austeridad­e. Tendo esgotado o campo de ação para reduzir as taxas de juros, os bancos centrais recorreram ao afrouxamen­to monetário (criando dinheiro para a compra de ativos).

Assim como as causas da crise foram muitas e variadas, também foram diversas as suas consequênc­ias. A crise impulsiono­u o surto populista de hoje, levantando questões sobre desigualda­de de renda, inseguranç­a no emprego e globalizaç­ão. Mas também mudou o sistema financeiro. A questão é: essa mudança foi suficiente?

Crise crônica. Colapsos bancários sistêmicos são uma caracterís­tica da história humana. O Fundo Monetário Internacio­nal (FMI) contabiliz­ou 124 deles entre 1970 e 2007. E não há dúvida de que eles ocorrerão novamente, no mínimo porque os tempos de bonança costuma gerar complacênc­ia. Basta observar que o governo de Donald Trump está desregulam­entando as finanças durante um boom econômico. Mesmo quando a prudência predomina, nenhuma autoridade reguladora consegue fazer um julgamento perfeito dos riscos.

Mais importante, no entanto, seria questionar se o tamanho das crises e as probabilid­ades de ocorrerem podem ser reduzidos. Nesse ponto, a notícias são boas e ruins.

Primeiro, a boa notícia. Os bancos agora precisam se financiar com mais capital e menos dívida. Eles dependem menos de transações para ganhar dinheiro e menos de tomar empréstimo­s no atacado, no curto prazo, para financiar suas atividades. Mesmo na Europa, onde poucos bancos obtêm grandes lucros, o sistema no total está mais forte do que era.

Autoridade­s reguladora­s reforçaram seu controle, especialme­nte sobre as instituiçõ­es que são grandes demais para falir. Nos dois lados do Atlântico, os bancos estão sujeitos a testes de estresse regulares e devem apresentar planos para sua própria extinção organizada. Os mercados de derivativo­s, do tipo que derrubaram a seguradora AIG, hoje são menores e mais seguros. As políticas de pagamento reformulad­as também devem evitar repetir a injustiça dos banqueiros receberem dinheiro público enquanto embolsaram grandes pacotes de pagamentos – em 2009, os membros dos cinco maiores bancos embolsaram US$ 114 bilhões.

Ainda por fazer. Muitas lições ainda não foram aprendidas. Um exemplo disso está nos erros cometidos pelos formulador­es de políticas no rescaldo da crise. O governo não teve escolha a não ser dar apoio a bancos em dificuldad­es, mas isso levou à decisão equivocada de abandonar famílias insolvente­s. Talvez 9 milhões de americanos tenham perdido suas casas na recessão; o desemprego aumentou. Enquanto as famílias pagavam suas dívidas, o consumo foi devastado.

Foram necessário­s dez anos inteiros para que o estímulo econômico compensató­rio restaurass­e a saúde da economia dos EUA. Muitas das economias da Europa ainda sofrem com fraca demanda agregada.

A política fiscal e monetária poderia ter feito mais e em menos tempo, para concretiza­r a recuperaçã­o. A política foi contida por preocupaçõ­es em sua maior parte deslocadas sobre a dívida do governo e a inflação. O fato de essa falha não ser mais amplamente reconhecid­a é um sinal ruim para a resposta política que se espera da próxima vez.

A estagnação, inevitavel­mente, alimentou o populismo. E, ao procurar bodes expiatório­s e soluções simplistas que os punam, o populismo tornou mais difícil enfrentar os problemas reais de longo prazo que a crise deixou expostos. Três deles se destacam: habitação, empréstimo­s offshore em dólares e o futuro do euro.

A forma precisa da próxima crise financeira não está clara – caso contrário, certamente seria evitada. Mas, de uma forma ou de outra, é provável que envolva o conceito de propriedad­e. Os governos dos países ricos nunca reconcilia­ram de forma adequada o desejo de incentivar a propriedad­e da casa com a necessidad­e de evitar booms perigosos no crédito doméstico, como nos anos 2000.

Nos Estados Unidos, a relutância em confrontar isso significa que o contribuin­te subscreve 70% de todos os novos empréstimo­s hipotecári­os. Em todos os lugares, os regulament­os incentivam os bancos a emprestar contra a propriedad­e, em vez de conceder empréstimo­s às empresas. O risco será mitigado somente quando os políticos adotarem reformas fundamenta­is, como a redução do endividame­nto das famílias, com hipotecas de compartilh­amento de risco. Nos Estados Unidos, os contribuin­tes devem sair do negócio espúrio de garantir a dívida hipotecári­a. Infelizmen­te, é altamente improvável que os populistas encarem os proprietár­ios de casas.

Além disso, a crise se espalhou através das fronteiras porque os bancos europeus ficaram sem os dólares de que precisavam para restituir seus empréstimo­s feitos em moeda americana. O Fed, então, ofereceu aos estrangeir­os US$ 1 trilhão de liquidez. Desde então, as dívidas de dólar offshore praticamen­te dobraram.

Para uma próxima crise, é improvável que o sistema político dos Estados Unidos deixe o Fed agir da mesma forma, como apoio a esse vasto sistema, mesmo depois que Donald Trump deixar a Casa Branca. Encontrar formas de tornar seguro os empréstimo­s offshore, como reunir reservas em dólares entre países emergentes, depende da cooperação internacio­nal do tipo que está rapidament­e caindo fora de moda.

A ascensão do nacionalis­mo também dificulta para a Europa a solução dos problemas estruturai­s do euro. A crise mostrou como os bancos e o governo de um país estão interligad­os: o estado luta para tomar empréstimo­s suficiente­s para sustentar os bancos, que são arrastados para baixo pela queda do valor da dívida pública.

Este círculo vicioso, em que os bancos em dificuldad­es e Estados soberanos levam um ao outro para o buraco permanece praticamen­te intacto. Até que a Europa compartilh­e mais riscos além das fronteiras nacionais – seja através de mercados financeiro­s, garantias de depósito ou política fiscal – o futuro da moeda única permanecer­á em dúvida. Um caótico colapso do euro faria com que a crise de 2008 parecesse fichinha.

Os formulador­es de políticas tornaram a economia mais segura, mas ainda têm muitas lições a aprender. E uma geopolític­a fraturada tende a dificultar ainda mais o financiame­nto globalizad­o. Uma década depois do fracasso do Lehman, o sistema financeiro ainda tem muitas questões preocupant­es para serem reparados. ✽

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A estagnação alimentou o populismo e tornou mais difícil enfrentar os problemas reais de longo prazo

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MARK AVERY/REUTERS - 2/5/2007 Desastre. Durante a recessão, há dez anos, desemprego aumentou e consumo foi devastado; crise afetou profundame­nte o mercado imobiliári­o

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