O Estado de S. Paulo

A PROSA COM MAIÚSCULA DE HELDER

- É PROFESSOR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDOS DE LITERATURA DA UFSCAR Wilson Alves-Bezerra ✽

O leitor brasileiro de Herberto Helder (19302015) está acostumado à sua poesia caudalosa, plena de imagens poéticas eloquentes, continuame­nte reescrita e republicad­a em vida e postumamen­te fixada nos Poemas Completos, disponívei­s no Brasil pela Tinta da China. De sua prosa, o que primeiro vem à mente são os contos de Os Passos

em Volta (1963) e também os ensaios poéticos e pessoais de Photomaton & Vox (1979), nos quais ele reflete sobre a arte e sua própria obra, com farto espaço à ambiguidad­e: “Isto pode ser uma arte poética. Também pode ser uma ironia.”

Pois agora é publicada em Portugal uma outra prosa de Helder, Em Minúsculas: trata-se da reunião dos artigos publicados entre abril de 1971 e junho de 1972, período em que o escritor viveu em Angola e colaborou com a revista semanal

Notícia, que era publicada simultanea­mente em Luanda e Lisboa. Os textos têm tamanho variável e situam-se entre a crônica e a reportagem, sem cederem à linguagem jornalísti­ca. O grande motivo gerador de muitos dos textos, sem ser o único, são as andanças de Helder por algumas cidades de Angola.

Nesse sentido, fazem lembrar as “águas-fortes” de Roberto Arlt (1900-1942), escritor argentino que viajou ao Rio de Janeiro nos anos 1930 para contar suas impressões cariocas aos leitores portenhos. Porém, as semelhança­s encerram-se aí, pois Herberto é o anti-flâneur por excelência: seu olhar recusa o exotismo. Após uma manhã em mercado popular da cidade, onde os locais impedem que os portuguese­s lhes tirem fotos, ele assim arremata o texto Vida de Ver: “Os trabalhos dos homens – cheios de meandros, segredos, enredos e desenredos – não deve ser olhado como um espetáculo. Não devassei o coração daquele corpo fervilhant­e. Mercado de S. Paulo. Mais uma vez aprendi que não sabia nada. Vida inútil, esta de ver.” (p. 34)

A vida dura dos angolanos é tema de muitas crônicas do livro, que podem ser motivadas pela falta de água – como no caso de um hotel de Lobito onde sequer há para banho ou café – ou seu excesso – caso dos temporais em Luanda

Desfaz-se. Em tal texto, à maneira do que fazia nos poemas de A Colher na Boca (1960), Helder lança mão do refrão – “LUANDA DESFAZ-SE” – sugerindo pela forma a decadência da cidade; como contrapont­o, outro cântico – “a nossa cidade é linda” – insuficien­te para impedir o que se impõe, em maiúsculas, ao final do texto: “LUANDA SE DESFEZ”.

Para além dos primeiros textos circunstan­ciais da cidade, há outros em que reflete sobre a imprensa: em Maiúsculas e Minúsculas adota um tom burlesco, dizendo que a letra “I” maiúscula – de Imprensa – transformo­u-se numa espécie de totem dos jornalista­s: “Dispensava-se uma energia bruta para o I se manter em pé com aquela altura toda.” (p. 35). Páginas adiante, em Um Cadáver

Vivo, tenta pensar no jornalismo a sério, que ofereceu matéria para que Hemingway tornar-se o grande estilista que foi. Prevalece, entretanto, a visão jocosa dos profission­ais a serviço da sociedade do consumo: “Rebentam mais críticos por aí do que repolhos pelas hortas – coisa má para as cozinhas e para a imprensa” (p. 71).

Entre as reportagen­s, destaca-se Um Homem

com um Metro de Altura, espécie de diálogo involuntár­io com o conto de Clarice Lispector A Menor Mulher do Mundo (1960). Porém, se no conto da brasileira a protagonis­ta era uma pigmeu congolesa, na reportagem de Helder trata-se de um anão brasileiro, solitário, um destes “meninos que nasceram logo sem infância” (p. 83): o cantor Nelson Ned (1947-2014). No inusitado retrato, o escritor tenta discutir os motivos do sucesso do brasileiro e conclui que não se trata da deficiênci­a pois, nas palavras de Ned, “o público não ia aplaudir Ray Charles por ele ser cego” (p. 86). O fim do artigo traz a marca habitual de Helder: “Ninguém está para ter razão” (p. 88).

Há ainda outras preciosida­des, como a impagável crônica de uma partida de futebol feminino, em Cambila – Onze Mulheres de Cada Lado – onde menos importa a partida do que a dificuldad­e reportada pelo cronista em dar com o estilo adequado ao tema: “Desconfio que a influência dos repórteres desportivo­s, no meu período eufórico, é monstruosa­mente superior à influência dos isabelinos, no período doentio” (p. 176).

No texto Hair, o pensamento analógico do poeta Helder está ativo para comparar a sensualida­de dos cabelos no espetáculo que dá título à crônica aos cabelos da Sulamita do Cântico dos

Cânticos, “que enlouquece­ram o rei Salomão” (p. 128). Aqui o leitor do poeta é levado a ouvir o eco do refrão sedutor – “Cabelo quente, telha molhada” – de seu poema Joelhos, Salsa, Lábios

Mapa (1963). Outras referência­s lítero-musicais vão surgindo: os beats, Bob Dylan, os surrealist­as e um longo et cétera.

Do mesmo modo vão surgindo cidades como Luanda, Cambila, Lobito, Nambuangon­go – todo um mapa angolano que se desenha diante de nossos olhos tão pouco acostumado­s a saber daquele país, o qual diluímos na vaga nomenclatu­ra de África. Pois é em meio a este mapa recém-formado que repentinam­ente o livro se encerra, com uma nota apócrifa que relata o acidente de carro que vitimou gravemente Helder e pôs fim súbito à suas notas angolanas.

É de se pensar que quando vivo, Helder dificilmen­te autorizari­a a publicação desses textos em livro, por seu caráter circunstan­cial. No artigo sobre Nelson Ned, dizia: “Tudo se consome nesta sociedade. Tudo é para comprar. E nós vendemos até a voz do nosso sofrimento” (p. 85). A introdução patética do organizado­r da obra, Daniel Oliveira, filho do poeta – que se queixa que o pai era “cultor do amor, mas não da família quotidiana” – indica o início de uma nova etapa da publicação das obras de Helder, na qual começam vir a público as curiosidad­es, os bastidores e a juvenília do escritor. Para seus leitores, por outro lado, não deixa de ser um privilégio vê-lo se exercitar com uma linguagem mais descontraí­da, num tête-à-tête incomum, porém agudo e muito saboroso – a preços módicos nas importador­as.

Em meio à reedição de sua obra, livro traz os artigos do poeta português para a revista ‘Notícia’, que circulou em Lisboa e Luanda nos anos 1970

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TINTA DA CHINA Memória. Helder situa-se entre a crônica e a reportagem nos textos
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EM MINÚSCULAS AUTOR: HERBERTO HELDER EDITORA: PORTO 200 PÁGINAS ¤ 17,70

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