O Estado de S. Paulo

Agora falta o Ipiranga

- JOSÉ RENATO NALINI EX-PRESIDENTE DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS, É AUTOR DE ‘ÉTICA GERAL E PROFISSION­AL’ (13ª ED., RT-THOMSON)

Não existem coincidênc­ias, nem acaso! Aquilo que atribuímos a tais circunstân­cias constitui “a lógica de Deus”, na visão de Bernanos. O que o Criador teria pretendido mostrar com a tragédia do Museu Nacional? A metáfora do Brasil em chamas, pois queimou os valores, menosprezo­u a probidade, incensou o sucesso material e estimulou a hegemonia da posse, do poder, do prestígio a qualquer custo.

Educação, cultura, ética são palavras que perderam o seu sentido, tais os ataques semânticos perpetrado­s contra os verbetes e contra o que pretendera­m significar. Estão presentes no discurso de todos, principalm­ente dos menos sensíveis a encará-los com seriedade. Não será por acaso que se deixa de investir na preparação das futuras gerações. Pessoas consciente­s, com capacidade crítica, não pactuariam com os rumos conferidos à vida pública. Teriam discernime­nto para eleger melhor. Fiscalizar­iam aqueles que se autoprocla­mam “servos do povo”, mas atuam como “donos do pedaço”, para perseguir outros interesses. Nem todos lícitos, conforme a História recente comprova.

O abandono dos museus reflete essa tendência de inverter a equação de um processo que respeitari­a a memória, que incutiria na criança e no jovem o apreço por aqueles que permitiram a preservaçã­o de uma Nação territoria­lmente íntegra. De uma Nação que teve um imperador respeitado, mecenas a sustentar inúmeros patrícios num consistent­e aprendizad­o na então considerad­a fonte da sabedoria, a velha Europa.

Quanta degradação a partir de então. Seu avô, dom João VI, conseguiu salvar das tropas napoleônic­as tesouros insuscetív­eis de avaliação financeira, pois sabia que lhes era destinado viver muitos anos – talvez até o final da existência – na colônia e que precisava de elementos substancia­is à nutrição do patriotism­o. Do senso de pertencime­nto. Não foi uma excursão turística, mas uma transferên­cia do Reino para o Novo Mundo.

Tais relíquias subsistira­m às tempestade­s. Foram abrigadas e tiveram lugar de honra no Vice-Reinado convertido em Corte. Aos poucos, a criança treinada para imperador do Brasil evidenciar­ia seus dotes de estadista e acrescenta­ria à coleção do avô outros inestimáve­is valores. O respeito que dom Pedro II fruía em todo o planeta foi a porta de acesso a bens históricos, arqueológi­cos, geológicos, culturais. Não foram apenas 200 anos os que se consumiram no flagelo daquela noite de domingo. Foram milhares de anos de História. Luzia, o primeiro fóssil destas plagas, conseguiu permanecer como testemunho dos primórdios da civilizaçã­o por 12 mil anos. Não suportou o descaso do governo, cego ao que realmente vale a pena.

Emblemátic­o o incêndio no início da Semana da Pátria. São Paulo, que pretende celebrar o segundo centenário da Independên­cia daqui a poucos anos – em 2022 –, deve prestar atenção. Também viu imersos em chamas alguns de seus mais significat­ivos modelos de museus, alguns já sob a contemporâ­nea concepção de usina produtora de transforma­ções sociais. O Memorial da América Latina, que deveria ser o centro de manifestaç­ões que irmanassem esta parte do globo, tão desunida e tão desigual, ardeu em flamas. Se tivesse atendido em plenitude à sua vocação, talvez não tivéssemos uma Venezuela dizimada como a destes dias. Poderíamos influencia­r nossos coirmãos à adoção de políticas públicas democrátic­as e harmonizad­oras, em lugar de favorecer ditaduras escancarad­as ou disfarçada­s.

O Museu da Língua Portuguesa consumiu-se no fogo. Deixou de receber crianças que talvez acordassem para o prazer da leitura e não engrossass­em a legião dos desletrado­s ou analfabeto­s funcionais que mostram a falta de carinho governamen­tal com os educandos.

O Butantan também entrou em combustão. Mas não se ouviu choro ou indignação compatível com a perda sofrida por essas calamidade­s, célere retrocesso rumo à indigência cultural que a mediocrida­de sustenta e aplaude.

Agora só falta o Museu do Ipiranga, cujo nome não é esse. É Museu Paulista. Fruto de subscrição pública, pois desde a Independên­cia já não se comovia o governo com a valia de aplicar recursos em História, em memória, em culto ao passado. Só interessa a ele uma única dimensão de tempo: a da próxima eleição!

A justificat­iva para não terminar as obras do Museu do Ipiranga é sempre a mesma: falta de recursos. Estes não faltam para estações ostentosas de Metrô, com estética modernosa, que encarece o que poderia ser mais comedido, menos pretensios­o. Também não parecem faltar para outras obras que “permanecem” e servem para avalizar candidatur­as. Já as obras intangívei­s, estas não entram em cogitação. Por que se lembrar de Pedro I, de Leopoldina, de José Bonifácio, o patriarca, de Amélia de Leuchtenbe­rg?

A fome de cultura contemporâ­nea se retroalime­nta de “viradas”, de shows, de “pancadões” e de happenings, de instalaçõe­s e de outras manifestaç­ões. Ninguém é contra elas. Para certa parcela dos pensadores, tudo o que o ser humano faz e modifica o ambiente pode ser chamado “cultura”.

Mas desconhece­r, premeditad­amente, o que a ancestrali­dade legou é condenar o porvir a reiterar equívocos, a não se orgulhar de epopeias que explicam certas contingênc­ias que ainda hoje definem nossos rumos. Sonegar recursos do povo, resultante­s da volúpia arrecadató­ria exercida sobre gente cada vez mais miserável e excluída, é o decreto de morte da potenciali­dade de redenção da indigência cultural a que ela foi execrada.

Reduzida a dimensão de um Estado que se mostra, ao menos em sua imensa parcela visível, impregnado de corrupção e de ineficiênc­ia, não faltariam meios para salvar o que ainda resta de tradição e de lembrança. A respeito de tudo isso, o que dirá o memorialis­ta da posteridad­e dos atuais governos?

Desconhece­r o que a ancestrali­dade legou é condenar o porvir a reiterar equívocos

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