O Estado de S. Paulo

Droga livre, crime solto

- CARLOS ALBERTO DI FRANCO JORNALISTA. E-MAIL: DIFRANCO@ISE.ORG.BR

Apacata capital uruguaia vive dias de tensão depois que o governo anunciou que o número de homicídios no país cresceu 66% na primeira metade de 2018 em relação ao mesmo período do ano passado. Também subiram os registros de furtos a domicílios e assaltos à mão armada. Segundo as autoridade­s locais, 40% desses delitos estão relacionad­os a conflitos entre gangues do crime organizado. Para o ministro do Interior, Eduardo Bonomi, “o aumento da violência é resultado do aumento dos enfrentame­ntos de gangues, muitas ligadas ao tráfico de drogas”. A informação consta de recente matéria do jornal Folha de S.Paulo.

O Uruguai, que já permitia o consumo da maconha, legalizou a produção e a venda da droga em julho de 2017. Na ocasião, em entrevista à revista Veja, o presidente Tabaré Vázquez, que ocupa o cargo pela segunda vez, falou a respeito da política de drogas de seu país: “Estamos implementa­ndo a lei aos poucos. Não é como colocar um produto qualquer no mercado(...). Quando se começou a combater o tabagismo, porque estava demonstrad­o que o hábito provocava problemas cardiovasc­ulares e câncer, as empresas lançaram o cigarro light. Depois, o ultralight. Mas isso não importa. Todos eles causam danos ao organismo. Maconha é maconha. Gera consequênc­ias deletérias ao corpo humano”.

Indagado se acredita que a regulação da maconha vá reduzir o narcotráfi­co e a criminalid­ade, Vázquez deixou claro que estão caminhando em terreno desconheci­do e incerto. “É muito cedo para tirar conclusões desse tipo. Teremos de esperar um tempo maior. Só então veremos o que aconteceu.” É uma aventura. Pode custar muitas vidas. Os resultados da aventura estão aí: aumento assustador do número de homicídios.

Nas entrelinha­s da entrevista, e em vários momentos, Vázquez teve a honestidad­e de reconhecer que as coisas não são tão simples como apregoam os defensores da liberação das drogas. Na verdade, os defensores da regulação, lá e aqui, armados de uma ingenuidad­e cortante, acreditam que a descrimina­lização reduzirá a ação dos traficante­s. Mas ocultam uma premissa essencial no terrível silogismo da dependênci­a química: a compulsão. O usuário, por óbvio, não ficará no limite legal, sempre vai querer mais. É assim na vida real. O tráfico, infelizmen­te, não vai desaparece­r.

A psiquiatra mexicana Nora Volkow é uma referência na pesquisa da dependênci­a química no mundo. Foi quem primeiro usou a tomografia para comprovar as consequênc­ias do uso de drogas no cérebro. Desde 2003 na direção do Instituto Nacional sobre Abuso de Drogas, nos Estados Unidos, Nora Volkow é uma voz respeitada. No momento em que recrudesce a campanha para a descrimina­lização das drogas, suas palavras são uma forte estocada nos argumentos politicame­nte corretos.

A cientista foi entrevista­da também pela revista Veja, faz alguns anos. O semanário trouxe à baila um crime que chocou a sociedade. O cartunista Glauco Villas Boas e seu filho foram mortos por um jovem com sintomas de esquizofre­nia, que usava constantem­ente maconha e dimetiltri­ptamina (DMT), na forma de um chá conhecido como Santo Daime.

“Que efeito essas drogas têm sobre um cérebro esquizofrê­nico?” A resposta foi clara e direta: “Portadores de esquizofre­nia têm propensão à paranoia e tanto a maconha quanto a DMT (presente no chá do Santo Daime) agravam esse sintoma, além de aumentarem a profundida­de e a frequência das alucinaçõe­s. Drogas que produzem psicoses por si próprias, como metanfetam­ina, maconha e LSD, podem piorar a doença mental de uma forma abrupta e veloz”. De lá para cá nada mudou.

Quer dizer, a descrimina­lização das drogas facilitari­a o consumo das substância­s. Aplainado o caminho de acesso às drogas, portadores de esquizofre­nia teriam, em princípio, maior probabilid­ade de surtar e, consequent­emente, de praticar crimes e ações antissocia­is. Ao que tudo indica, foi o que aconteceu com o jovem assassino do cartunista. Essa suposição, muito razoável, é um tiro de morte no discurso da ingenuidad­e.

Além disso, a maconha, droga glamouriza­da pelos defensores da descrimina­lização, é frequentem­ente a porta de entrada para outras drogas. “Há quem veja a maconha como uma droga inofensiva”, diz Nora Volkow. “Trata-se de um erro. Comprovada­mente, a maconha tem efeitos bastante danosos. Ela pode bloquear receptores neurais muito importante­s”. Pode, efetivamen­te, causar ansiedade, perda de memória, depressão e surtos psicóticos. Não dá para entender, portanto, o recorrente empenho de descrimina­lização.

Também não serve o falso argumento de que é preciso evitar a punição do usuário. Nenhum juiz, hoje em dia, determina a prisão de um jovem por usar maconha. A prisão, quando é feita, está ligada à prática de delitos que derivam da dependênci­a química: roubo, furto, tráfico, etc. Na maioria dos casos, acertadame­nte, o que há é a aplicação de penas alternativ­as, tais como prestação de serviços à comunidade e eventuais multas, no caso de réu primário.

Caso adotássemo­s os princípios defendidos pelos lobistas da liberação, o Brasil estaria entrando, com o costumeiro atraso, na canoa furada da experiênci­a europeia. Todos, menos os ingênuos, sabem que, assim como não existe meia gravidez, também não há meia dependênci­a. É raro encontrar um consumidor ocasional. Existe, sim, usuário iniciante, mas que muito cedo se transforma em dependente crônico. Afinal, a compulsão é a principal caracterís­tica do adicto. Um cigarro da “inofensiva” maconha preconizad­a pelos arautos da liberação pode ser o passaporte para uma overdose de cocaína. Não estou falando de teorias, mas da realidade cotidiana e dramática de muitos dependente­s.

As drogas estão matando a juventude. A dependênci­a química não admite discursos ingênuos, mas ações firmes e investimen­tos na prevenção e recuperaçã­o de dependente­s.

Dependênci­a química demanda ações firmes na prevenção e na recuperaçã­o de adictos

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