Trapalhadas com as contas públicas
Ciro Gomes continua afirmando que o maior problema da despesa pública é a financeira, uma vez que corresponde a aproximadamente 50% do total de gastos da União. Trata-se de uma leitura equivocada de um dos muitos quadros que acompanham o Projeto de Lei Orçamentária Anual (Ploa). O pior é que essa tolice vem sendo repetida por jornalistas, vários políticos e se espalhou pelas redes sociais. Virou verdade. E não é inócua. Confunde, tira o foco dos verdadeiros problemas e causa calafrios nos credores do governo, a saber, grande parte da população que detém, direta ou indiretamente, títulos públicos, e não só no “baronato”.
Dado que se baseia em documento oficial, por que tal conclusão seria tola? Porque é preciso saber ler corretamente as informações e não as tomar a valor de face.
Pelos números citados, deve ter sido utilizada a execução orçamentária de 2016. Para facilitar as comparações, farei o mesmo, embora os dados de 2017 já estejam disponíveis. Estes favoreceriam ainda mais os argumentos do candidato, se sua análise fizesse sentido.
Na linguagem do orçamento público, toda entrada de caixa é tratada como receita e toda saída, como despesa. Esse conceito não é útil para analisar a situação econômico-financeira de qualquer instituição, tampouco do governo. Por exemplo, o pagamento do principal de uma dívida (amortização) não é uma despesa, mas sim uma mutação patrimonial. Perde-se disponibilidade de caixa, mas reduz-se um passivo (dívida), no mesmo montante.
No caso do setor público, não é possível, nem seria recomendável, quitar de vez toda a dívida vincenda em um exercício. Se para fazer isso o governo utilizasse parte de suas disponibilidades na conta única que mantém no Banco Central, geraria excesso da oferta de reais na economia e a autoridade monetária teria de regular a liquidez mediante venda de títulos em operações compromissadas. O resultado seria apenas o encurtamento do prazo da dívida pública. Ou seja, a dívida vincenda deve ser rolada. E o valor desse refinanciamento aparece no mesmo quadro orçamentário, dentro de “receitas financeiras”, mas foi sumariamente ignorado pelo candidato.
Por certo, dada a grave situação atual das contas públicas, o principal objetivo é estabilizar, e posteriormente reduzir, a relação dívida/PIB. Mas isso depende do superávit primário, do juro real e da taxa de crescimento da economia. Tampouco o juro nominal é importante, pois este só atualiza, pela inflação, o saldo da dívida, como o faz com o valor nominal do PIB.
Portanto, somar amortização do principal, juros nominais e reais e despesas não financeiras num só bolo, e sair tirando participações porcentuais de cada item na tal “despesa total”, é uma atrocidade analítica. Vamos a alguns números relativos a 2016.
A despesa primária da União foi de R$ 1,23 trilhão. Desse total, os benefícios pagos apenas pelo Regime Geral da Previdência Social (RGPS) corresponderam a R$ 510 bilhões, ou 41,5% do total. Se ampliarmos essa classificação para o que chamo de benefícios de
Candidato do PDT comete terrível erro de diagnóstico que, se levado a sério, poderia custar caro ao País
natureza previdenciária, incluindo inativos da União, o abono e o segurodesemprego e o benefício de prestação continuada, chegaremos a R$ 725 bilhões, nada menos que 59% da despesa primária total. Pessoal, sem inativos, absorveu R$ 148 bilhões, 12% do gasto primário.
Se adotarmos o conceito de embolar despesas primárias, amortização do principal e juros nominais e reais, a despesa total praticamente dobra e as participações das rubricas citadas desmoronam, a saber: RGPS, 20,9%; benefícios de natureza previdenciária, 29,7%; e pessoal (sem inativos), 6,1%. Com esses números, as reformas fiscais, principalmente da Previdência, perdem importância. É um terrível erro de diagnóstico que, se levado a sério, poderia custar caro ao País.
ECONOMISTA, DIRETOR-PRESIDENTE DA MCM CONSULTORES, FOI CONSULTOR DO BANCO MUNDIAL, SUBSECRETÁRIO DO TESOURO NACIONAL E CHEFE DA ASSESSORIA ECONÔMICA DO MINISTÉRIO DA FAZENDA