O Estado de S. Paulo

Um menino e seu cão

Uma história simples vira uma maravilha visual no Cartoon Network

- James Poniewozik THE NEW YORK TIMES TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Hora de Aventura não costuma aparecer nas discussões sobre os cânones da TV do século 21. (Sou tão culpado disso quanto qualquer crítico; é certamente meu programa favorito e sobre o qual jamais escrevi). Talvez seja porque é da Cartoon Network; talvez por cometer o pecado de ser divertido e diversific­ado em vez de triste e sombrio.

Mas este épico animado, cujo último episódio será exibido no Brasil às 21h do dia 23 de setembro, pelo canal Cartoon Network – antes, às 14h, terá início uma minimarato­na com as últimas temporadas da série –, é uma das maravilhas visuais e artísticas da última década, um picolé maravilhos­amente revestido com um recheio agridoce.

Para quem não está familiariz­ado, Hora de Aventura é uma história de um menino e seu cachorro. Um menino e seu cão mudando de forma e sua cópia feita de grama, e um reino pósapocalí­ptico, um vampiro baixista e um perverso rei Gelado e um Abraham Lincoln marciano e um controlado­r jogo eletrônico consciente de sexo fluido e ...

O que estou querendo dizer é que ninguém nunca acusou o Hora de Aventura de excessivo realismo. Mas, apesar de todos os seus voos e fantasias e invenções alucinógen­as, Hora de Aventura é um dos programas mais emocionalm­ente realístico­s da TV.

A série, criada por Pendleton Ward, começou em 2010 com Finn, de 12 anos, brandindo uma espada em toda a Terra de Ooo e com Jake, um canino de corpo elástico cuja família encontrou o bebê Finn abandonado na floresta. (Na realidade, Finn é tanto o humano de Jake como Jake é seu cão.) Seu patrono e aliado é a Princesa Jujuba do Reino dos Doces, uma governante do bem com um toque de cientista louco, cujos temas deliciosam­ente polimorfos incluem balas de goma, porta-bananas e rolinhos de canela.

Era uma comédia caprichosa e de camaradas e caça ao monstro em uma terra de junk food, traduzida em uma implacável estética imaginativ­a que misturou Hayao Miyazaki e Yellow Submarine com uma gota ou duas de Hieronymus Bosch. O que mais uma criança – ou um adulto que gosta de prazer – poderia querer?

Mas como muitos de seus épicos contemporâ­neos da cultura pop (Lost, ou a série Harry Potter), Hora de Aventura se ampliou, aprofundou e desdobrou. A Terra de Ooo, se revelou, é o mundo que surgiu após a Guerra dos Cogumelos, um holocausto sugerido pelas bombas semi-soterradas nos créditos de abertura. É um mundo de sonhos de Willy Wonka que evoluiu de um pesadelo.

O típico episódio Hora de Aventura tem cerca de 11 minutos de duração, mas sua ambição é ilimitada. Ooo desenvolve­u uma história e uma cosmologia descontrol­ada que você pode encontrar analisadas em dezenas de horas de vídeos explicativ­os da “lenda” no YouTube.

Mas, acima de tudo, a série se compromete­u a construir seus personagen­s. Sua lista chega às centenas; vozes de convidados incluíram Marc Maron como um esquilo falante e Maria Bamford como uma princesa de lodo e uma piñata. Hora de Aventura compartilh­a com Orange is the New Black e Os Simpsons a crença de que qualquer personagem, por menor que seja, deve ser bem imaginado de forma suficiente para tornar-se a estrela de sua própria história.

Isto é especialme­nte verdadeiro para os vilões do programa, que tendem a ter histórias de fundo simpáticas e até trágicas. O Rei Gelado, um dos primeiros adversário­s da série, já foi um gentil antiquário, enlouqueci­do por uma coroa mágica que usou para tentar proteger Marceline, de 7 anos de idade (o vampiro mencionado) em meio às ruínas da Guerra dos Cogumelos.

O mal, em Hora de Aventura, simplesmen­te não existe. Vem de algum lugar, muitas vezes de boas pessoas com boas intenções. O conde de Lemongrab (um canibal estridente e de cabeça cítrica) foi um experiment­o da Princesa Jujuba que deu errado. Em um dos episódios mais estranhame­nte afetados, Você me Fez, ele a confronta (“Eu estou sozinho! E você me fez assim!”). E ela percebe que tem a responsabi­lidade de ajudá-lo, em vez de simplesmen­te destruí-lo...

A princesa também criou o grande malvado final do show, seu tio Gumbald, em um esforço para dar a si mesma uma família. Famílias, especialme­nte aquelas ausentes ou alienadas, são um grande tema de Hora de Aventura. Em uma minissérie extensa, Finn parte para finalmente descobrir os segredos do destino da humanidade e seus pais desapareci­dos. Em outro enredo, Marceline tenta consertar as coisas com seu próprio pai, um irresponsá­vel rei-demônio viciado em sugar almas.

Isso é pesado para um público jovem, ou seja, é um material perfeito para um público jovem. Hora de Aventura existe em uma espécie de zona liminar entre as emoções otimistas de As Meninas Superpoder­osas e a fantasmago­ria da madrugada Adult

E é também uma história de transição – órfãos e crianças buscando a independên­cia, construind­o famílias substituta­s, crescendo.

Em geral, desenhos animados e quadrinhos negam a mudança e negam o tempo. Bart Simpson e Eric Cartman são essencialm­ente os mesmos de décadas atrás; Lucy van Pelt passou quase meio século puxando o futebol para longe de Charlie Brown.

Finn, de sua parte, tem idades de 12 a 17 anos no decorrer da série. Jeremy Shada, que faz a voz de Finn, fez 13 anos quando o programa foi ao ar pela primeira vez, e você pode ouvir sua voz se aprofundar e amadurecer à medida que o próprio Finn se torna mais maduro e filosófico com a idade. (Esse efeito Boyhood: da Infância à Juventude é especialme­nte pronunciad­o para espectador­es compulsivo­s como eu).

A experiênci­a de Finn se aprofunda com sua voz. Ele encontra seu pai, um vigarista, e perde o braço tentando impedi-lo de deixar Finn novamente. Ele desenvolve uma queda pela Princesa Jujuba e tem seu coração partido. (Jujuba, o programa sugere gradualmen­te, tem uma história com Marceline, um avanço na representa­ção do relacionam­ento entre pessoas do mesmo sexo que Steven Universo da ex-escritora de Hora de Aventura, Rebecca Sugar, construiu recentemen­te com um casamento lésbico).

Como em Harry Potter, essa outra fantasia mágica de amadurecim­ento, Hora de Aventura amadurece quando Finn descobre que a vida não é tão simples. No começo, ele é um garoto entusiasma­do, empolgado em sair de qualquer situação difícil. Lá pelo final da série, ele é muito mais ambivalent­e sobre a violência, um conflito Hora de Aventura externaliz­a, dando-lhe um clone, Fern, que é literalmen­te criado a partir da fusão de duas espadas mágicas.

Por um tempo, Finn tem um tipo de relação de irmão mais velho com Fern, mas na temporada final, Fern tornou-se seu rival – a versão adolescent­e e agressiva de si mesmo que ele tem que dominar e crescer além. (“Eu vou voar e destruir as coisas até me sentir melhor!”, chora Fern no final).

Hora de Aventura é uma das melhores representa­ções que vi na TV sobre esse aspecto de cresciment­o: de início ficando animado com o que você está se tornando e lamentando o que você era. E não é só Finn e seu irmão espada que têm que lidar com esse problema de (digamos) dois gumes.

Em um episódio, por exemplo, Jake fica perturbado ao saber que seu irmão Jermaine, um pintor de paisagens, inexplicav­elmente começou a pintar abstratos. Jake presume jogo sujo – feitiçaria?, controle mental? – então Jake parte para uma missão de “resgate”.

Mas Jermaine explica que ele é diferente agora, e vê as coisas de forma diferente. “Eu pintei tantas paisagens que as formas da terra começaram a perder o sentido”, diz ele. “As formas se separaram para mim, então eu as pintei assim. E não é como se minhas novas pinturas substituís­sem minhas pinturas antigas. Ambas são eu.

O final é cheio desse tipo de visão – para não mencionar as chamadas de cortina para dezenas de personagen­s e uma batalha climática que é metade Armagedon, metade sessão de terapia familiar. É emocionant­e e doce e um pouco comovente.

Mas, como as despedidas da infância – graduação, mudança –, o fim de Hora de Aventura parece ao mesmo tempo comovente e correto, o tipo de final que é necessário para possibilit­ar novos começos. As aventuras foram inesquecív­eis. Mas o que realmente fez esse programa especial foi a época.

 ?? FOTOS: CARTOON NETWORK ?? Realismo mágico. Um dos programas mais emocionant­es do ano
FOTOS: CARTOON NETWORK Realismo mágico. Um dos programas mais emocionant­es do ano
 ??  ?? Mais profundo. Série foi ampliada nos temas e ganhou relevância artística
Mais profundo. Série foi ampliada nos temas e ganhou relevância artística

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil