Regência da república
Entramos numa crise constitucional. O diagnóstico não é desta colunista e sim de especialistas americanos em Direito Constitucional e analistas conservadores. A conclusão precedeu o editorial anônimo escrito por um alto assessor da Casa Branca e lido mais de 10 milhões vezes nas primeiras 24 horas, após ser publicado no New York Times. O editorial, que saiu na quarta-feira, 5, descrevia um presidente desequilibrado, incapaz de coordenar política externa, segurança nacional e tratado como uma criança impulsiva por assessores. Fora a estarrecedora afronta do autor escondido atrás do acordo de anonimato feito com o Times, dizendo ao público, não se preocupem, vamos tomar conta dele, o editorial não continha novidades.
Quase todo o caos é descrito no livro Fear (Medo), de Bob Woodward, que sai amanhã com primeira edição de um milhão de exemplares. Woodward, que dissecou nove presidentes, tem centenas de horas de gravação e recibos, como a carta que um assessor econômico roubou da escrivaninha do Salão Oval. A carta de setembro de 2017, pronta para a caneta presidencial, informava ao presidente Moon Jae-in a suspensão do acordo comercial dos EUA com a Coreia do Sul, num momento de escalada de tensões entre o sul e o norte na península coreana. O presidente não percebeu o sumiço da carta e ficou por isso mesmo.
No dia 7 de agosto de 1974, o senador Barry Goldwater, então um expoente da liderança conservadora, foi à Casa Branca falar com Richard Nixon, acompanhado de dois colegas e membros do partido do presidente, o líder da minoria republicana na Câmara e o líder da minoria republicana no Senado. Pela constituição americana, o processo de impeachment, iniciado na Câmara, só pode ser completado com dois terços dos votos no Senado. Goldwater não pediu ao presidente, afundando sob o peso das revelações do escândalo Watergate, para renunciar. Ele deu um recado mais simples. Acabou o apoio da sua base política, disse. Nixon renunciou no dia 9.
Acelere o calendário para 2018 e esta é uma reação ao editorial, típica de um republicano moderado e crítico do presidente infante: “É só semelhante ao que todos nós ouvimos de altos assessores da Casa Branca, sabe, três vezes por semana”, disse Ben Sasse, senador do estado de Nebraska.
O destaque da crise constitucional em curso varia de acordo com o analista. Ela pode se referir ao fato de que um presidente física ou mentalmente incapacitado de governar deve enfrentar o recurso da 25.ª emenda da constituição, passada depois do assassinato de John Kennedy. A emenda chegou a ser discutida no governo de Ronald Reagan, cujos primeiros sintomas do Mal de Alzheimer que contribuiu para sua morte depois de deixar o governo alarmaram assessores. Ela determina a substituição do presidente pelo vice, mas, por ser vaga na definição de incapacidade, requer um processo rígido de documentação.
Mas a caracterização de crise constitucional pode ser favorável ao presidente. Afinal, ele foi eleito e o autor do editorial não foi. O anônimo está admitindo algo que poderia ser, longe da imaginação de Gleisi Hoffman, um golpe. O presidente dos EUA assume também o título de Comandante em Chefe das Forças Armadas, portanto, tem a palavra final sobre ações militares. Num arroubo, como conta Woodward no livro, mandou o Secretário da Defesa assassinar o presidente sírio Bashar Assad. O secretário Mattis desligou o telefone e disse ‘não vamos fazer nada disso’.
Durante esses dias extraordinários na história americana, não consigo deixar de pensar em paralelos com o Brasil exausto. Emergências deviam transcender ideologias e unir vozes discordantes. Se um atentado é reduzido à oportunidade na rede social, quantos vão, com zelo pela constituição, entender o risco de um infante incendiário no Planalto?
Emergências deviam transcender ideologias e unir vozes discordantes