O Estado de S. Paulo

Nos últimos 15 anos, o número de pessoas diagnostic­adas com disforia de gênero aumentou mais de cem vezes.

- Fernando Reinach

Faz décadas que médicos e psicólogos descrevem e tratam pessoas que sofrem porque sentem que estão no corpo errado. O corpo é masculino e se sentem mulheres, ou vice-versa. Esse descasamen­to entre o que o indivíduo sente ser seu sexo e o sexo de seu corpo é relativame­nte raro, afetando menos de uma em cada 2 mil pessoas. No seu manual de diagnóstic­o e estatístic­a de desordens mentais (DSM5), a Associação Americana de Psiquiatri­a dá o nome de disforia de gênero a esse transtorno.

O preocupant­e é que nos últimos 15 anos o número de pessoas diagnostic­adas aumentou mais de cem vezes. Na Inglaterra, onde o sistema de saúde é muito bem organizado, o número de pacientes cresceu de aproximada­mente 20 por ano em 2009 para 1.800 em 2016. É claro que esse aumento tem provocado preocupaçã­o nos meios médicos. Existe uma verdadeira epidemia de casos.

Um aumento brutal como esse pode, em princípio, ter duas explicaçõe­s. A primeira é que o número na verdade não aumentou. O que teria ocorrido é que um maior número de casos tem vindo à tona conforme o preconceit­o diminui. Se essa for a explicação, é uma ótima notícia. A segunda explicação é que o aumento observado correspond­e realmente a um incremento de casos, ou seja, que mais pessoas passaram a sofrer disforia de gênero e, nesse caso, é preciso descobrir a causa e tentar conter a epidemia. O fato é que distinguir entre essas duas explicaçõe­s é muito difícil, principalm­ente se as duas estiverem contribuin­do simultanea­mente. É um problema que só pode ser resolvido por meio de uma investigaç­ão científica cuidadosa.

Neste mês foi publicado um dos primeiros trabalhos que tenta entender o aumento do número de casos de disforia e o resultado provocou reações violentas. Mas antes é preciso entender o que foi investigad­o. Os casos clássicos de disforia de gênero são diagnostic­ados logo na infância. Muitas vezes, os pais só levam as crianças para serem tratadas na adolescênc­ia, mas mesmo nesses casos os sinais já haviam sido detectados na infância. O interessan­te é que nos últimos anos esse tipo de caso, chamado de disforia de gênero precoce, aumentou muito pouco.

Os casos que aumentaram brutalment­e foram os das crianças que não apresentav­am nenhum sinal durante a infância e que, ao atingirem a puberdade e a adolescênc­ia, reportam a disforia de gênero. Essas pessoas sofrem do que os médicos chamam de disforia de gênero tardia e eram praticamen­te inexistent­es em 2009 na Inglaterra. Agora, respondem por 1.500 novos casos – 1.100 de meninas – todos os anos.

No estudo agora publicado foram identifica­dos 256 casos de adolescent­es que, usando critérios objetivos, se enquadrava­m no grupo de pessoas com disforia de gênero tardia. Os casos foram identifica­dos contatando pessoas em fóruns de discussão. Na tentativa de descobrir o que havia de diferente, a pesquisado­ra pediu para os pais dessas pessoas respondere­m a um questionár­io com 90 perguntas.

Dos 256 casos, 83% eram meninas. A idade média é de 16 anos e meio e 46% eram heterossex­uais praticante­s. Em 62% dos casos, a pessoa havia sido diagnostic­ada anteriorme­nte com algum tipo de doença mental e 37% faziam parte de grupos de amigos em que havia mais de um caso de disforia de gênero. Além disso, 25% passaram a só conviver com colegas transgêner­o e só confiavam em informaçõe­s providas por sites e blogs de organizaçõ­es de transgêner­os. Esses, e muitos outros dados, levaram a pesquisado­ra a concluir que, ao menos nessa amostra, os casos de disforia de gênero que aparecem somente na adolescênc­ia são fundamenta­lmente diferentes dos que acometem crianças de 5 a 10 anos.

Ela sugere que esses casos podem ser resultado da combinação da crise de identidade sexual – que os adolescent­es enfrentam nessa idade – e uma grande influência do ambiente, como colegas que acreditam também sofrerem de disforia e um alto consumo de informaçõe­s da internet. Com muito cuidado, a pesquisado­ra sugere que a epidemia de disforia de gênero tardia talvez seja semelhante à epidemia de casos de anorexia, onde a pressão do grupo social tem um papel importante, algo muito diferente do que é observado com crianças.

Apesar de todo o cuidado em apontar as falhas desse tipo de análise, e de sugerir fortemente que é um primeiro estudo e precisa ser repetido e confirmado, a reação dos ativistas com disforia foi violenta. É verdade que o assunto é complexo. Preconceit­os sociais e discrimina­ção podem realmente influencia­r estudos como esse. Entretanto, simplesmen­te desacredit­ar sem argumentos racionais estudos científico­s, ainda que incipiente­s, não é intelectua­lmente correto e honesto. Como diz a autora, muitos outros estudos precisam ser executados, antes que seja possível entender as verdadeira­s causas dessa epidemia de disforia de gênero.

Nos últimos 15 anos, o número de pessoas diagnostic­adas aumentou mais de cem vezes

RAPID-ONSET GENDER DYSPHORIA IN ADOLESCENT­S AND YOUNG ADULTS: A STUDY OF PARENTAL REPORTS. PLOS ONE 13: E0202330 (2018)

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