O Estado de S. Paulo

Uma Bienal que não grita, mas suspira

Fórmula do artista-curador, herdada dos impression­istas, nem sempre funciona, mas a mostra tem bons nomes

- Antonio Gonçalves Filho

Uma exposição em que artistas são também curadores não é exatamente uma ideia nova. Na mostra que marcou o ano zero do movimento impression­ista, em 1874, alguns dos 30 artistas participan­tes desempenha­ram igualmente esse papel, hoje visto com desconfian­ça em função dos abusos cometidos por curadores ao organizar exposições que tratavam os artistas como seres destituído­s de vontade própria. O curador da 33.ª edição da Bienal de São Paulo, o espanhol Gabriel Pérez-Barreiro, em busca de um modelo mais democrátic­o, batizou sua mostra de Afinidades Afetivas, amálgama do título do romance de Goethe (As Afinidades Eletivas, 1809) com um texto do crítico Mário Pedrosa sobre a “natureza afetiva da forma na obra de arte”. E convidou sete artistascu­radores para organizar com ele uma bienal sem tema.

Ainda que não temática e plural, a Bienal tem algo das ligações perigosas do casal central do romance de Goethe, que se relaciona de forma apaixonada com outros casais quando seria providenci­al uma dose mínima de razão. O epílogo, claro, é trágico. Não chega a ser o caso da 33.ª Bienal, graças justamente a artistas que disseram “não” e correram riscos em sua trajetória. Um dos curadores convidados, o brasileiro Waltercio Caldas, jamais se ajustou ao modelo afetivo, sendo suas escolhas ditadas pela razão. Deixou claro que não escolhia nomes, mas objetos que têm a ver com sua obra. Sua seleção é um dos destaques de uma bienal em que o sentido de reserva territoria­l é incômodo – e francament­e egocêntric­o.

Os artistas-curadores da Bienal não são pares ligados por uma atração inexplicáv­el como os casais de Goethe, mas por gestos voluntario­sos e pouco dispostos a confrontar o papel protocolar do curador-ilustrador, que usa a arte alheia em benefício próprio. O próprio caráter insular da mostra, reforçado por uma expografia que forma pequenas ilhas num arquipélag­o dentro do pavilhão da Bienal, parece contradize­r a vontade de se construir uma mostra radical, continenta­l, que replicasse as polaridade­s de Goethe.

Dito assim, pode-se concluir que a mostra é pouco atraente. Não é. Há nela nomes que se destacam por mérito de alguns artistas-curadores, caso da sueca Mamma Anderson, que revela suas fontes pictóricas não necessaria­mente contemporâ­neas – caso do americano Henry Darger, nascido em 1892. O diálogo com a tradição é, contudo, diferente da conversa de Waltercio com artistas que admira e nem por isso duplica.

Outro nome de peso é o do holandês Roderick Hietbrink, que lida com a irrupção do surreal no cotidiano (em seu vídeo, um carvalho invade uma sala de visitas, arrastando de móveis a bibelôs, uma crítica ao modernismo idealista dos holandeses). A escolha do uruguaio Alejandro Cesarco tem a ver com a árvore genealógic­a traçada pela sueca Mamma – especialme­nte quando se associa sua obra a iconoclast­as como a americana Elaine Sturtevant (1924-2014), que usava imagens de Warhol e outros artistas em seu trabalho.

Entre artistas mortos que devem ser procurados – e esta é a palavra, consideran­do a má colocação das etiquetas de identifica­ção – estão a brasileira Lucia Nogueira (1950-1998), que construiu uma obra inusual com objetos prosaicos, o paraguaio Feliciano Centurión (1962-1996), cujos bordados (e temas) são próximos de Leonilson, e o conceitual Aníbal Juarez López (1964-2014). Entre os mortos, Tunga reina soberano na sala barroca de Sofia Borges. E a exposição organizada pelo espanhol Antonio Ballester é uma das melhores desta Bienal que não grita, mas suspira.

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ANTHONY REYNOLDS GALLERY Destaques.Lucia Nogueira(foto maior);Centurión(acima);Ballester(ao lado)33ª BIENAL DE SÃO PAULOPavil­hão Ciccillo Matarazzo.Pq do Ibirapuera. 3ª, 4ª, 6ª, dom. e feriados, 9h/19h (entrada até 18h); 5ª e sáb., 9h/22h (entrada até 21h). Grátis.Até 9/12
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ANTONIO BALLESTER MORENO

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