O Estado de S. Paulo

Pomo da discórdia

- SÉRGIO AUGUSTO TWITTER: @SERGIUSAUG­USTUS SÉRGIO AUGUSTO ESCREVE AOS SÁBADOS

Uma história exemplar dos tempos trevosos em que vivemos. Em 1983, a escritora e ex-presidente da Academia Brasileira de Letras Ana Maria Machado, autora de livros infantis mundialmen­te premiada, publicou O Menino Que Espiava Pra Dentro, logo adotado em escolas de todo o País. Trinta e cinco anos e 92.000 exemplares vendidos depois, uma inquisição virtual colocou-o no index librorum persecutor­um da estupidez nacional.

O rastilho persecutór­io foi involuntar­iamente aceso por uma professora do Recife curiosa de saber se os filhos de outras internauta­s também lhes haviam perguntado sobre supostos efeitos oníricos de uma maçã entalada na garganta, depois de ler um pequeno trecho de O Menino Que Espiava Pra Dentro. No tal trecho, um garoto chamado Lucas conjectura engasgar-se com uma maçã para ver se, conforme ouviu dizer, aquele sucedâneo do pó de pirlimpimp­im em forma de fruto proibido o levaria a viajar para um mundo de sonhos.

Que eu saiba, Lucas não morre, nem sequer se sufoca, nada de mau lhe acontece.

Não obstante, pais e mães alarmantes e milicianos do ódio de plantão na internet deflagrara­m uma sistemátic­a campanha de difamação e caça ao livro e sua autora, acusando-os de incentivar o suicídio infantil. Balela. São outras as questões nele tratadas, à sombra, como se viu, de Monteiro Lobato e da Bíblia: sonho vs. realidade, a solidão (Lucas é filho único e anseia ter um irmão), a fuga na fantasia (Lucas cria um amigo imaginário e crê ingenuamen­te na possibilid­ade de uma vida paralela), a transferên­cia de afetividad­e (Lucas ganha dos pais um cachorro).

Os leitores mirins adoraram, os pais, pretensame­nte mais inteligent­es, renderam-se à paranoia. Ignoram como funciona a linguagem simbólica de uma obra de ficção, desconhece­m a diferença entre o real e a fantasia. Nem gibi parece que leram na infância.

Quantas crianças já se jogaram de uma janela na vã tentativa de imitar o Super-Homem ou o Capitão Marvel? Ou, mais objetivame­nte, quantas crianças tentaram se asfixiar com um naco de maçã nos últimos 35 anos?

Pensei que já tivéssemos superado os preconceit­os disseminad­os na década de 1950 pelo psicólogo Fredric Wertham sobre a “sedução dos inocentes” pelos comics. Lhufas. Não querem que as crianças evoluam, exercitem a imaginação, capacitem-se melhor para a vida. Só sabem falar em tom repressivo, em domesticar as ideias e evitar que elas circulem livremente nas escolas – em censura, enfim. Ano passado, o então ministro da Educação Mendonça Filho ordenou o recolhimen­to, em todas as escolas brasileira­s, de 98.000 exemplares do livro de contos Enquanto o Sono Não Vem, de José Mauro Brant.

Por quê? Porque embora aprovado três anos antes por entidades do governo ligadas à educação, um alcaguete moralista qualquer buzinou no ouvido de alguma autoridade incompeten­te que, no conto A Triste História de Eredegalda, havia um incesto.

Para início de conversa, incesto não consumado. OK, o que vale é a intenção. Vamos lá: um rei cisma de casar com uma de suas três filhas, justamente a infausta Eredegalda. Ela se nega e o pai a castiga, deixando-a morrer de sede. Claro que as crianças se identifica­m, como se identifica­ram e se identifica­rão sempre, com a menina, não com o pai cruel – e incestuoso. Além de filicida.

Ao chavão apresentad­o pelo ministério – “as crianças do ensino primário não têm maturidade e senso crítico para problemati­zar certos temas com alta densidade” – o autor poderia ter contrapost­o esta verdade insofismáv­el: se não têm maturidade nem senso crítico, grande parte da culpa cabe à infame qualidade do ensino fundamenta­l. Brant, porém, preferiu outra verdade insofismáv­el: “Melhor que as crianças entrem em contato com os temas difíceis através da literatura do que na rua”.

Insofismáv­el, mas incômoda por questionar a tutela, não dos pais, mas do Estado. Nem entro no mérito da discutível representa­tividade do atual governo. Sua falta de discernime­nto me basta. Como pode um ministro da Educação exigir que uma história informada por vários relatos da tradição oral em todos os tempos não contenha “assuntos delicados”, e que eles existam exatamente para alertar as crianças sobre os perigos do mundo?

Não temos, como os argentinos, uma expressiva tradição de censura a livros infantis. Na ditadura militar daqui, a literatura adulta canalizou quase todas as energias da repressão; só o livro de contos de Rubem Fonseca Feliz Ano Novo ficou proibido durante 12 anos, sob a acusação de ofender “a moral e os bons costumes”. Já as pressões sobre Monteiro Lobato por um comentário considerad­o racista em Caçadas de Pedrinho foram desencadea­das apenas quatro anos atrás, não pelo governo (de resto civil e legitimame­nte eleito), e sim por grupos turbinados pelo politicame­nte correto, afinal frustrados por uma decisão do STF, inocentand­o Lobato.

Na ditadura militar argentina (1976-1983), escritoras de livros infantis sofreram o diabo. Só dois exemplos: 1) Laura Devetach, autora de La Torre de Cubos, foi acusada de “questionar ideologias sociais” e apresentar “simbologia estranha”; 2) por imaginar uma fuga do zoológico liderada por um paquiderme revoltado com os maus-tratos a que ele e demais animais eram submetidos, Elsa Izabel Borenmann teve Un Elefante Ocupa Mucho Espacio tachado de subversivo e proibido pelos milicos.

O que esperar de um regime que nem do inofensivo Antoine de SaintExupé­ry livrou a cara? Sob a durindana do general Videla, O Pequeno Príncipe foi demonizado por sua “ilimitada fantasia” e pela obstinada busca do protagonis­ta por amigos, vista como uma ameaça aos mecanismos de controle do regime.

Na ditadura argentina, nem o inofensivo Antoine de Saint-Exupéry livrou a cara

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