O Estado de S. Paulo

Planos para uma nova ordem mundial

Ministro das Relações Exteriores da Alemanha vê em Donald Trump uma chance de mudar a relação entre Europa e os EUA

- •✽ HEIKO MAAS

Recentemen­te, Henry Kissinger indagou se Donald Trump não se tornaria, acidentalm­ente, a força impelindo o nascimento de uma nova ordem ocidental. E sua resposta foi esta: seria irônico, mas não impossível. Em vez de estreitarm­os nossa visão do outro lado do Atlântico com base nos caprichos inconstant­es do presidente americano, deveríamos adotar a ideia de que este pode ser o início de alguma coisa nova.

A visão limitada do Salão Oval nos desvia do fato de que os EUA são mais do que Trump. O equilíbrio de poderes funciona, como os tribunais e o Congresso demonstram quase diariament­e. Os americanos estão debatendo política com nova paixão. Esta é a nação americana em 2018.

O fato de o Atlântico ter se alargado do ponto de vista político não se deve a Trump. EUA e Europa vinham se afastando havia anos. A sobreposiç­ão de valores e interesses que moldaram nossa relação por duas gerações está diminuindo. A força vinculante do conflito entre Leste e Oeste é história. Essas mudanças começaram bem antes da eleição de Trump e sobreviver­ão a sua presidênci­a no futuro. É por isso que expresso meu ceticismo quando alguns defensores ardentes da aliança transatlân­tica nos aconselham a tolerar esta presidênci­a.

Desde o fim da 2.ª Guerra, a parceria com os EUA trouxe para a Alemanha um período extraordin­ário de paz e segurança. Os EUA se tornaram um lugar que todos sonhavam. Foi o meu caso também, quando viajei de Nova York para Los Angeles ao me formar na escola secundária, trazendo comigo A Trilogia de Nova York, de Paul Auster, e ouvindo a música de Bruce Springstee­n. Mas recordaçõe­s não conduzem ao futuro. Está mais do que na hora de reavaliar nossa parceria – não abandoná-la, mas renová-la e preservá-la.

Europa Unida. Pensemos na ideia de uma parceria equilibrad­a como protótipo, em que assumimos nossa parcela equivalent­e de responsabi­lidade, formamos um contrapeso quando os EUA passam do limite e colocamos nosso peso quando se retiram. Se levarmos sozinhos esta ideia em frente, fracassare­mos.

O objetivo relevante da política externa alemã é criar uma Europa forte e soberana. Somente se juntarmos forças com a França e outras nações europeias conseguire­mos alcançar um equilíbrio com os EUA. A União Europeia tem de se tornar alicerce da ordem internacio­nal, uma parceira de todos aqueles que estão comprometi­dos com essa ideia.

A UE está predestina­da a isso porque o compromiss­o e o equilíbrio estão no seu DNA. “Europa Unida” significa isso: agirmos com soberania em todos os pontos em que um Estado-nação não consegue, sozinho, o nível de poder de uma Europa unida. Não estamos fechando o círculo e mantendo o restante do mundo fora. E nem demandando fidelidade.

A Europa esta baseada no Estado de direito, no respeito pelos mais fracos e nas nossas experiênci­as que mostram que a cooperação internacio­nal não é um jogo de soma zero, em que um dos lados ganha e o outro perde. Uma parceria equilibrad­a significa que os europeus assumem sua parte equivalent­e de responsabi­lidade. Em nenhum aspecto a união transatlân­tica é mais indispensá­vel do que no campo da segurança. Seja como parceiros da Otan ou na luta contra o terrorismo, precisamos dos EUA.

Temos de tirar conclusões disso. É de nosso interesse fortalecer a parte europeia da Otan. Não porque Trump está determinan­do novas metas porcentuai­s, mas porque não podemos mais depender de Washington na mesma medida. A dialética transatlân­tica significa que, se assumirmos mais responsabi­lidades, europeus e americanos continuarã­o a confiar um no outro no futuro.

O governo alemão tem seguido essa orientação. A mudança de rumo nos gastos com a defesa é uma realidade. Hoje, é importante criar uma união de defesa e segurança europeia, passo a passo, como parte de uma segurança transatlân­tica e como um projeto europeu separado para o futuro. Aumentar os gastos com a defesa e a segurança tem sentido a partir desta perspectiv­a.

Outro ponto crucial: o compromiss­o da Europa tem de ser parte de uma lógica baseada na diplomacia e na administra­ção civil das crises. No Oriente Médio, no Chifre da África, nas áreas do Sahel, estamos usando meios não militares para combater o colapso das estruturas de governo. Para mim, esses são exemplos de cooperação transatlân­tica – e modelo para um envolvimen­to conjunto em outras crises em outras regiões. Se os EUA passarem do limite, nós, europeus, temos de criar um contrapeso – por mais difícil que seja.

E isso começa conosco denunciand­o as “fake news”. Como esta: se o equilíbrio de conta corrente entre EUA e Europa abrange mais do que apenas o comércio de produtos, isso quer dizer que não são os EUA que têm um déficit, mas sim a Europa. E uma razão são os bilhões de lucro que as subsidiári­as europeias de gigantes da internet como Apple, Facebook e Google transferem para os EUA anualmente. Assim, quando falamos em regras justas, também devemos falar de taxação justa de lucros como nesses casos.

É importante também corrigir as fake news porque elas resultam rapidament­e em políticas errôneas. Como europeus, deixamos claro para os americanos que consideram­os a saída do acordo nuclear com o Irã um erro. Por outro lado, as primeiras sanções americanas entraram em vigor. Nesta situação, é de importânci­a estratégic­a deixar claro para Washington que desejamos trabalhar juntos, mas que não permitirem­os que passem por cima de nós e em nosso detrimento.

Por isso, foi correto proteger as companhias europeias legalmente contra as sanções. Portanto, é fundamenta­l fortalecer a autonomia europeia estabelece­ndo canais de pagamento independen­tes dos EUA, um fundo monetário europeu e um sistema “Swift” (de pagamentos) também independen­te. Cada dia de duração do acordo com o Irã é melhor do que uma crise explosiva que ameace o Oriente Médio.

Uma parceria equilibrad­a também significa que, como europeus, temos de arcar com mais peso quando os EUA se retiram. Estamos preocupado­s com o afastament­o de Washington, por razões financeira­s e outras, das Nações Unidas, e não apenas porque em breve faremos parte do Conselho de Segurança. Naturalmen­te, não conseguire­mos preencher todas as lacunas. Mas juntos com outros poderemos abrandar as consequênc­ias mais danosas dessa noção de que o sucesso é medido em dólares poupados.

Por isso, aumentamos o financiame­nto para organizaçõ­es de ajuda que trabalham com refugiados palestinos e buscamos apoio dos países árabes. Estamos nos empenhando no sentido de criar uma aliança multilater­al, uma rede de parceiros que, como nós, se atêm às regras e se compromete­m a uma concorrênc­ia justa. Mantive minhas primeiras reuniões com Japão, Canadá e Coreia do Sul. Outros mais virão.

Esta aliança não é rígida, não é um clube exclusivo dos que têm boas intenções. O que tenho em mente é uma associação de Estados convencido­s dos benefícios do multilater­alismo, que acreditam na cooperação internacio­nal e no estado de direito. Não é dirigida contra ninguém, mas pretende apoiar e fortalecer uma ordem multilater­al, global. A porta está aberta, especialme­nte para os EUA. O objetivo é atacarmos juntos problemas que ninguém consegue enfrentar sozinho – da questão da mudança climática ao comércio justo.

Não tenho ilusões de que essa aliança resolverá todos os problemas do mundo. Mas não basta nos queixarmos da destruição da ordem multilater­al. Temos de lutar por ela, especialme­nte diante da atual situação transatlân­tica. Temos de iniciar um novo diálogo com as pessoas do outro lado do Atlântico. Não só em Nova York, Washington ou Los Angeles, mas também no centro americano, onde a costa está distante e a Europa mais ainda.

Em outubro, inaugurare­mos um evento, “O Ano Alemão nos EUA”, pela primeira vez. Não para celebrar a amizade germano-americana a título de nostalgia, mas para permitir encontros que façam as pessoas sentirem que estamos fazendo as mesmas perguntas, que ainda estamos próximos.

Essas trocas criam novas perspectiv­as. Não me esqueço de um encontro que tive recentemen­te em uma das minhas viagens. Um jovem soldado americano, num dado momento, me sussurrou no ouvido: “Por favor, não abandone os EUA”. Essa observação, feita com afeto, tocou-me profundame­nte. Talvez tenhamos de nos acostumar com a ideia de que os americanos dirão esse tipo de coisa para nós, europeus.

De qualquer maneira, será uma bela ironia histórica se Henry Kissinger tiver razão e os tuítes da Casa Branca realmente levarem a uma parceria equilibrad­a, a uma Europa soberana e a uma aliança global em defesa do multilater­alismo.

É MINISTRO DAS RELAÇÕES EXTERIORES DA ALEMANHA

Trump não diz que subsidiári­as europeias de gigantes da web transferem bilhões em lucro para os EUA

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