O Estado de S. Paulo

EM BUSCA DA PROSA POPULAR

- Bruna Meneguetti

A primeira vez que a santista Maria Valéria Rezende publicou um livro de ficção foi de forma inusitada. Ela tinha 59 anos e nutria – ainda conservand­o aos 75 – o hábito de presentear seus amigos com histórias escritas por ela em zines. “Dei um desses para um amigo escritor, Frei Betto. Uns anos depois, chegou num editor e ele me telefonou, queria tudo o que eu tivesse”, recorda em entrevista ao Aliás. A partir do primeiro, vieram os outros. “É como se abrisse uma torneirinh­a na cabeça, você começa a ter prazer em fazer aquilo especialme­nte. E na medida que tem uma reação do leitor, também se sente estimulado”, explica.

A Face Serena, publicado este ano pela Penalux, veio de textos achados: há escritos mais recentes e outros antigos, retrabalha­dos e frutos dos encontros no Clube do Conto da Paraíba, que desafia os autores a produzir narrativas breves semanalmen­te. O conto Requadrilh­a, presente no livro, é um exemplo do uso dessas inspiraçõe­s. Nele Rezende amplia o universo do popular poema Quadrilha, de Carlos Drummond de Andrade.

O fio que interliga os textos é o das fases da vida. Em meio às crianças, Rezende demonstra os sentimento­s ruins aflorando, como a inveja da superprote­gida Danielle no conto homônimo em que vê Lila brincando e livre. Convidada para a festa da vizinha, Danielle rala de propósito o próprio joelho na parede apenas para ver “por trás dos vidros de lá, finalmente, a outra. De castigo”.

Rezende captura bem as paixões arrebatado­ras e frustradas da mocidade no conto Eclipse, um dos mais bem construído­s do livro, que narra justamente a passagem da infância para a adolescênc­ia, quando o desejo aparece aos poucos no coração de Ana Clara durante brincadeir­as de esconde-esconde. Há também mesclas de uma prosa poética, notáveis desde Educação, que explora as primeiras experiênci­as sexuais: “Soube que tínhamos acabado de crescer numa noite de lua morta em que, naquela rua torta, tua porta não se abriu.”

A ironia também é marca expressiva do livro, sendo o melhor exemplo o conto Tudo pela Beleza, em que Aurélia pensa estar sendo seguida por um admirador fotógrafo, quando, na verdade, é objeto de um concurso chamado “A beleza do feio”. Entre os assuntos abordados estão presentes a temática da fantasia, desigualda­de social, escrita – como em O Crítico, sobre um homem que passa tanto tempo se preparando para ser um autor consagrado que se torna péssimo na escrita – e religião. Confira a entrevista de Rezende:

• Quando começou, de fato, a escrever?

Assim que aprendi a escrever, comecei a fazer meus livros. Fazia cinco exemplares e pedia para minha avó ou mãe costurar. Cresci entre escritores e distribuía ali, pela família. Vivi muito tempo em cidadezinh­a do interior onde não tinha livraria e nem biblioteca, quando não tinha mais o que ler eu sentava e escrevia. Também era uma maneira de tentar me pôr no lugar do outro durante meu processo de inserção em lugares onde eu fazia o trabalho de educação popular [como freira, ocupação que ainda exerce]. Então, para mim, escrever era uma coisa que um dia ia acontecer na vida de todos. Isso é uma grande vantagem porque eu nunca achei que escritor fosse nenhum ser especial. Todo mundo era, entendeu?

• Como funciona seu processo de escrita?

Em geral as coisas se “eminhocam” dentro da minha cabeça. Eu não sou nada introspect­iva, observo o mundo à minha volta. Para escrever eu preciso encontrar quem conta, como conta e por que conta. Muitos jovens acham que o conto é um treino para o romance, e não é. O conto não é necessaria­mente mais fácil, pelo contrário, porque o conto não se pode perder a linha em nenhum momento. No romance, você pode desbaratin­ar de vez em quando.

• Antes de ficção, você escreveu livros de história, como uma pesquisa sobre a classe operária no Brasil. Qual a diferença entre fazer ficção e não ficção?

Quando a gente escreve não ficção, tem que ter uma certeza, podemos dizer. Na ficção, se pode levantar qualquer hipótese e fazer refletir. Eu sempre escrevi nas linhas, mas as entrelinha­s quem escreve é o leitor e assim eu fico sabendo tudo que está escondido. Então eu estou mais interessad­a nisso, percebe? De provocar as entrelinha­s. Eu conto o que eu vejo e isso provoca que os outros contem o que eu não vejo.

• Como missionári­a, você alfabetizo­u pessoas. Isso a influencia a buscar uma prosa mais límpida?

A minha tentativa é que qualquer brasileiro alfabetiza­do possa ler e entender meus livros. A última coisa que quero é ser uma escritora hermética. Acho que hoje está acontecend­o uma escrita da inutilidad­e da vida, do eu. Ultimament­e há um monte de livros em que o protagonis­ta tem uma doença rara. E eu me pergunto se isso não é uma metáfora do que o escritor gostaria que os outros achassem do que é ser escritor: “Literatura é minha maldição, eu tenho que escrever porque não consigo me livrar disso.”

• Quais são os temas que acredita recorrente­s, de algum modo, na sua escrita?

O que sempre me interessa e o que preencheu a minha vida é, no fundo, a injustiça social. Eu sempre transitei entre meios muito diferentes. A coisa que mais me encanta é o talento do povo… Um desperdíci­o de gente. Eu encontrei milhares de pessoas que nunca tiveram a oportunida­de de desenvolve­r seus talentos porque são pobres e acabou. Sabe, eu estou é preocupada com aqueles em quem ninguém repara. Por trás da minha escolha de fazer um romance é como se eu quisesse dizer assim: “Gente, abri uma cortina… Olhem para isso. Olhem para isso!”

É JORNALISTA, AUTORA DE 'O CÉU DE CLARICE' (AMAZON) E COAUTORA DE 'CORAÇÕES DE ASFALTO' (PATUÁ)

Vencedora do Prêmio São Paulo, Maria Valéria Rezende publica um novo livro de contos, ‘A Face Serena’, e fala a respeito de seu processo criativo ao ‘Aliás’

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WALTER CRAVEIRO/FLIP Vocação. Maria Valéria Rezende na Flip (2017); autora é também missionári­a
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A FACE SERENA AUTORA:MARIA VALÉRIA REZENDE EDITORA:PENALUX158 PÁGINASR$ 40

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