O Estado de S. Paulo

Militar ou não militar

- FERNÃO LARA MESQUITA JORNALISTA, ESCREVE EM WWW.VESPEIRO.COM

Militar também é cidadão? Sem dúvida. Mas à instituiçã­o à qual ele pertence é confiado o exercício do componente mais pesado do monopólio do uso da força que a Nação delega ao Estado. E isso põe regras rígidas para os que encarnam essa instituiçã­o participar­em da discussão política, especialme­nte da parte dela que diz respeito à conquista e ao exercício do governo. Como o poder, mais que tudo, corrompe, convém manter uma distância profilátic­a entre o poder armado e o poder desarmado (assim como também, e pela mesma razão, entre o poder político e o poder econômico). Os dois (ou os três) concentrad­os nas mesmas mãos, diz a História que não registra exceções, produzem tentações fortes demais para a natureza humana resistir e esse é o caminho mais curto para o poder absoluto, aquele que corrompe absolutame­nte.

Um militar tem todo o direito, portanto, de desligar-se da instituiçã­o das Forças Armadas para tentar uma carreira política. Mas militares da ativa ou da reserva ainda ligados às Forças Armadas, se quiserem enveredar por esse caminho, têm de escolher entre o desligamen­to da instituiçã­o ou manter, acima de tudo, o respeito à hierarquia que lhe impõe silêncio no debate político-eleitoral.

O limite desse racional está na definição das atribuiçõe­s constituci­onais das Forças Armadas, a primeira das quais é defender a própria Constituiç­ão, cujos fundamento­s básicos são a soberania do povo sobre o Estado e o princípio da alternânci­a no poder, que definem a natureza democrátic­a do regime.

As Forças Armadas brasileira­s vêm respeitand­o irrepreens­ivelmente esse limite desde 1985. Agora essa fronteira começa a ficar menos nítida. Mas seria falsear a verdade apontar os últimos pronunciam­entos que passaram da medida como manifestaç­ões espontânea­s de pessoas ou instituiçõ­es sedentas de poder.

A mais nefasta das especialid­ades da esquerda radical militante – aquela que põe as ideias à frente das “narrativas” e as faz independen­tes dos fatos na estruturaç­ão da sua “lógica” – é materializ­ar os fantasmas que cria. Se há algum grau de atrito dentro dos limites da convivênci­a e da tolerância entre classes, raças, gêneros, preferênci­as ideológica­s e o que mais possa diferencia­r pessoas de pessoas, ela trabalha sempre no sentido de acirrá-lo até transformá-lo na “guerra” com que justifica o seu próprio radicalism­o e, no extremo, a eliminação física do adversário transforma­do em “inimigo”.

As declaraçõe­s de militares assinalada­s em condição de impediment­o não são propriamen­te ações, são mais exatamente reações. O partido ou o candidato que oficialmen­te aponta como exemplo regimes como o da Venezuela e outros que se estabelece­m exclusivam­ente pela força, está assumindo uma posição de fato contra a democracia e a alternânci­a de poder prescritas pela Constituiç­ão. Também não foram os militares, são a presidente do PT em pessoa e os dois candidatos que disputam a simpatia da esquerda – o “poste” finalmente erguido e Ciro Gomes – que têm afirmado textualmen­te que suas candidatur­as são uma etapa do projeto de anular a condenação de Lula pela Justiça e pelas leis vigentes no Brasil (“à bala” se alguém resistir, na versão de Ciro). Tudo isso não apenas soa, como frequentem­ente se apresenta explicitam­ente como ameaça direta contra a democracia e o princípio da alternânci­a no poder.

E o que dizer de um Supremo Tribunal Federal que, coroando uma sequência de manobras de uma insistênci­a impossível de interpreta­r como fortuita, proíbe a produção de uma prova física do voto – como as de que dispõem todos os países democrátic­os do mundo – depois de ela ter sido aprovada uma vez pelos representa­ntes eleitos do povo e reconfirma­da, depois de vetada pela “presidenta” petista, com votação muito mais que suficiente para reverter um veto presidenci­al? Ou da sucessão de decisões votadas pelos representa­ntes eleitos do povo e em seguida anuladas, seja por votações do plenário, seja por decisões monocrátic­as de ministros do STF que, de troco, legislam em causa própria atribuindo-se aumentos de salário indecentes num quadro de economia de guerra para o resto do País? Onde tudo isso deixa o princípio da soberania do povo?

A válvula de escape que resta quando as demais instituiçõ­es rateiam é o chamado 4.º Poder da República. Mas também a imprensa tem falhado. Só que há uma realidade aqui fora que já foi a um extremo tal que não há mais como contempori­zar. A estratégia de paralisar o governo Temer esfriou a memória nacional e diluiu os direitos autorais do desastre econômico do lulismo. Isso, mais a velha mistura de desinforma­ção com miséria assistida, explica a posição de um terço do eleitorado. A penúria em que essa paralisia deixou a classe média meritocrát­ica, os microempre­sários, os caminhonei­ros, os prestadore­s de pequenos serviços, os aposentado­s do País real e até a fatia de baixo do funcionali­smo mal pago (que inclui boa parte dos militares e dos policiais), explica o outro terço. De um jeito ou de outro, esse Brasil tem de se fazer ouvir. Cada fato omitido, cada pergunta que deixar de ser feita pelos atores contratado­s pelos sistemas democrátic­os para atuarem nessas ocasiões acaba por voltar na boca de alguém que deveria ficar do lado de fora do debate eleitoral. Daí ser a verdade – inteira – não apenas o melhor, mas o único remédio receitável para uma democracia que se quer representa­tiva.

Mas por mais “justificad­os” pelos fatos que tais desabafos possam estar, é preciso resistir à tentação de fazê-los. O Brasil, à beira de um processo de entropia que uma vez instalado se torna irreversív­el, já viu esse filme. Andar à margem da democracia, não importa por qual margem, é para os antidemocr­atas. Por isso ao terço restante do eleitorado – aquele que insiste na democracia sem aspas, nem vírgulas, nem hiatos – resta, por enquanto, uma escolha de Sofia que toda e qualquer suspeição em torno do respeito ao principal só fará tornar ainda mais difícil.

Ao terço do eleitorado que insiste na democracia resta uma escolha de Sofia...

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