O Estado de S. Paulo

Segurança jurídica

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Na entrevista que concedeu ao Estado, publicada neste domingo, o novo presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ministro João Otávio Noronha, tocou numa importante questão jurídica e política. Trata-se da falta de previsibil­idade das decisões dos tribunais superiores, uma vez que seus ministros cada vez mais tendem a buscar soluções jurídicas inovadoras para os litígios que têm de julgar, valendo-se muitas vezes de casos concretos para alargar as fronteiras de sua autoridade, o que acaba impedindo a pacificaçã­o de determinad­os temas e, por consequênc­ia, inviabiliz­ando a formação de uma jurisprudê­ncia uniforme e objetiva para todos os tribunais.

A questão apontada pelo novo presidente do STJ, que é a segunda Corte mais importante do País, envolve a possibilid­ade de o Supremo Tribunal Federal (STF) mudar de entendimen­to sobre a prisão após condenação criminal em segunda instância. Até 2009, o STF entendia que a execução da pena só deveria ocorrer após a análise do último recurso possível. O problema desse entendimen­to é que ele permite aos condenados com disponibil­idade de recursos financeiro­s contratar bons advogados, que não hesitam em impetrar todos os recursos previstos pela legislação até o crime prescrever. Como muitos desses condenados não cumprem um único dia de pena e a prescrição acaba com a possibilid­ade de sofrerem qualquer sanção, essa artimanha desmoraliz­a a Justiça.

Por isso, em 2016 o STF mudou de entendimen­to e decidiu que um réu condenado por órgão colegiado em segunda instância poderia cumprir imediatame­nte a pena. A decisão foi tomada no julgamento de um habeas corpus que, em princípio, valeria apenas para aquele caso específico. Com base nela, contudo, muitos juízes e desembarga­dores passaram a expedir mandados de prisão para casos idênticos. Com a condenação – e posterior prisão – do ex-presidente Lula pelo Tribunal Regional Federal da 4.ª Região, o STF passou a ser pressionad­o a voltar atrás. E, ao retomar a discussão em abril deste ano, pela diferença de apenas um voto, manteve o entendimen­to firmado em 2016.

Foram os novos recursos impetrados no Supremo pelos advogados de Lula, com o objetivo de continuar pressionan­do a Corte a mudar de entendimen­to, que levaram o ministro João Otávio Noronha a afirmar que não faz sentido o Judiciário alterar suas posições conforme o perfil político de cada condenado. “O STF já definiu essa matéria, que está decidida. O tema da possibilid­ade de prisão de réu condenado em segunda instância já está pacificado. A jurisprudê­ncia já foi formada e não se pode mudar isso todo o mês. Não vejo elementos novos que justifique­m qualquer mudança de entendimen­to. Ministros podem eventualme­nte voltar atrás, mas o plenário não o fará jamais. A Justiça não é lugar de heróis ou de vilões. É lugar de juízes técnicos, que têm compromiss­o com a ordem jurídica”, disse o novo presidente do Superior Tribunal de Justiça.

Objetiva, precisa e oportuna, a fala do ministro João Otávio Noronha recoloca na agenda a responsabi­lidade dos tribunais superiores no zelo e na garantia da segurança do direito. Em países com instituiçõ­es de direito consolidad­as, as mudanças na jurisprudê­ncia costumam ser feitas pelos tribunais superiores em ciclos longos, a cada duas ou três gerações de magistrado­s em média, justamente para assegurar a estabilida­de nas relações sociais e não disseminar incerteza jurídica.

Por maiores que sejam as divergênci­as que os magistrado­s dessas cortes possam ter no plano doutrinári­o, eles têm senso de responsabi­lidade institucio­nal. Por isso, privilegia­m a chamada previsibil­idade das expectativ­as propiciada­s pelos precedente­s e pela jurisprudê­ncia. Sabem que, se a mudassem de modo açodado e descuidado, por razões de conjuntura política, levariam os direitos dos cidadãos a serem decididos de modo aleatório, como numa loteria. O mérito do novo presidente do STJ foi chamar a atenção para estes pontos, que são fundamenta­is para o Estado de Direito e para a democracia.

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