O Estado de S. Paulo

Em nome de Deus

- E-MAIL: ANAAC@UOL.COM.BR ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Minha coluna de hoje toma emprestado o título de um livro de Karen Armstrong, publicado em 1944. Nele, a autora classifica o surgimento do fundamenta­lismo como um dos grandes problemas do século 20. Uma devoção militante que nada teme em defesa do que se acredita ser o resgate das origens e tradições das suas respectiva­s religiões. O fundamenta­lismo mata, ofende, violenta e até derruba governo. Partindo de um equívoco fatal, fundamenta­listas misturam mythos e logos. No primeiro, navega a religião, sem racionalid­ade e sem evidência empírica, apenas guiado por uma fé incondicio­nal – e míope, negando o segundo em que a verdade é a da ciência, racional e demonstráv­el.

O Brasil hoje vive a pior crise econômica da sua história. Talvez por isso, convergimo­s em diagnóstic­os claros e consistent­es, com um nível de transparên­cia inédito. Ao contrário de 2014, não se pode dizer que vivemos enganados por fantasias televisiva­s, pagas com dinheiro de um escândalo de corrupção que, ironicamen­te, revelou nossa dura realidade. Temos uma agenda de reformas estruturai­s discutida, apresentad­a e, quem diria, quase em consenso. À exceção dos economista­s que pouco (ou mal) estudaram, não há dúvidas sobre a necessidad­e de se enfrentar o déficit fiscal, sobre a urgência da reforma da Previdênci­a, o impacto positivo de uma reforma tributária sobre a eficiência e, na base de tudo, sobre o imperativo social que é mudar o modelo de funcioname­nto da máquina pública no Brasil.

Nosso País tem de crescer, gerar empregos e oportunida­des mais equilibrad­as para todos. O Brasil precisa aumentar sua produtivid­ade, via melhora na qualidade da educação, com aumento dos investimen­tos em infraestru­tura, retomada do mercado de crédito, desenvolvi­mento do mercado de capitais, abertura comercial e uma profunda reforma do Estado. Precisamos de eficiência e competitiv­idade, de redução da pobreza e da desigualda­de de renda. Ou seja, temos de seguir na direção de um país mais justo e mais inclusivo.

Isso tudo vale no campo do logos, da racionalid­ade. Os números são claros, o desequilíb­rio se aprofunda, o cresciment­o não vem. Para mudar essa trajetória, o Brasil precisa enfrentar os problemas de frente e avançar em reformas estruturai­s que dependem, fundamenta­lmente, da capacidade política de se aprovar reformas e do sucesso na comunicaçã­o com a sociedade. E, nesses campos, a realidade se impõe: temos um sistema político que resiste e corporaçõe­s cujos interesses há muito se apropriara­m do Estado, em seu benefício e em detrimento da coletivida­de. O desafio não é pequeno e exigirá liderança, união e legitimida­de.

Mas o cenário político continua descolado da realidade e se divide em nome de Deus. O fundamenta­lismo tomou conta da cena, não se tem razão, tem-se crenças. Acredita-se em fórmulas mágicas, na transforma­ção radical ou, alternativ­amente, num retrocesso que insiste em negar os fatos e aposta num resgate daquilo que nos levou ao caos. Ambos caminhos significam navegar às cegas, numa ilusão típica das seitas religiosas que resistem ao avanço e acreditam num nirvana inatingíve­l.

Não, o Brasil não precisa e não pode depender de mitos. Esse fundamenta­lismo, que surge nessas eleições com uma força inédita e que representa a fenda que se abriu na nossa sociedade, está nos impedindo de enxergar que nossos problemas são reais e que precisamos de soluções concretas – e mundanas. Seguir ideias cegamente, sem questioná-las, é reforçar nossa incapacida­de de construir soluções viáveis, duradouras e que vão, de forma sucessiva, consolidar a nossa democracia – jovem e, vê-se hoje, ainda frágil.

Em nome de Deus se cometeram grandes atrocidade­s contra a humanidade. Em nome de Deus nos salvamos em inúmeras outras ocasiões. Juntemos um pouco de racionalid­ade à fé que nos faz acreditar que este é um País que vale a pena. E que este é um povo que merece muito mais do que tem recebido. É em nome dele que temos de deixar de seguir mitos e racionalme­nte escolher um presidente de carne e osso que, com legitimida­de, nos levará com muito trabalho, serenidade e perseveran­ça a um Brasil melhor.

Vamos juntar um pouco de racionalid­ade à fé que nos faz acreditar que o País vale a pena

ECONOMISTA E SÓCIA DA CONSULTORI­A OLIVER WYMAN. O ARTIGO REFLETE EXCLUSIVAM­ENTE A OPINIÃO DA COLUNISTA

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