O Estado de S. Paulo

O que disse o meteorito

- GUSTAVO H.B. FRANCO EX-PRESIDENTE DO BANCO CENTRAL E SÓCIO DA RIO BRAVO INVESTIMEN­TOS

Ometeorito de Bendegó foi descoberto em 1784 no sertão da Bahia. Pesando exatos 5.360 kg, teve sua primeira tentativa de remoção no ano seguinte, quando a pedra, formada de ferro e níquel, escapou da carreta que a levava, e caiu às margens do rio Bendegó, a 180 metros de seu leito original.

Apesar de sua ilustre ascendênci­a autenticam­ente alienígena, sua denominaçã­o veio desse riacho no leito do qual dormitou por mais de um século. Sua remoção para o Rio de Janeiro se deu apenas em 1887, em meio a dificuldad­es, tanto logísticas quanto políticas, relatadas com precisão por Machado de Assis numa crônica de 27 de maio de 1888, trazendo, ademais, um incrível esforço de reportagem: destaques do diálogo entre o meteorito e José Carlos de Carvalho, da Sociedade Geográfica, chefe da expedição que trouxe o “estrangeir­o viajado” para o Museu Nacional.

Conforme o cronista, o meteorito vinha andando, “sempre vagaroso e científico”, a todo momento queixando-se da demora no seu translado:

– Você sabe que nós, lá em cima, andamos com a velocidade de mil raios; aqui nestas ridículas estradas de ferro, a jornada é de matar.

Mais adiante, diante de “rumores” referentes à Abolição e à República, fez observaçõe­s da mais absoluta impertinên­cia sobre a política local. Mesmo lembrando que não era “doutor constituci­onal nem de outra espécie”, brincou que ser republican­o não implicava em ser abolicioni­sta, pois, afinal, os sulistas nos Estados Unidos não tinham lutado para mudar a forma de governo, mas para preservar a escravatur­a. Carvalho já se convencera que o seu convidado era um mineral insolente.

Passaram-se, então, 130 anos, nada na vida de um meteorito, quando veio o incêndio que retirou desse torpor o nosso mais célebre alienígena.

Em meio à confusão, entretanto, nossa reportagem conseguiu registrar um momento precioso, perdido pela cobertura do triste evento: segundo fontes, todas deste mundo, o meteorito, “circunspec­to, chamuscado e científico”, e também um tanto mal-humorado, teria conversado com o reitor da UFRJ, responsáve­l pela sua hospedagem, quando ele entrou sozinho pelos escombros do museu:

– Roberto, faz tempo que você não aparece. Que tragédia. Não preciso lhe dizer o que eu penso: nós do acervo somos (éramos) 20 milhões de itens, e levávamos só uns R$ 400 mil por ano do orçamento, algo como 2 centavos per capita. Não dá para viver com essa miséria. Cada um de seus alunos custa uns R$ 70 mil por ano, e ninguém paga nada, e 87% do seu orçamento é para pessoal. O que você esperava?

– Era o que me faltava, um meteorito sindicalis­ta e argentário.

O reitor ainda podia desabafar, enquanto os jornalista­s não o alcançavam para uma coletiva, talvez incluindo o único sobreviven­te da tragédia.

– Falando nisso, li sobre esse dinheiro do Banco Mundial que você recusou, é verdade mesmo, Roberto? Como você foi capaz?

– Pois é, não me estranha que o resto do acervo tenha lhe apelidado de Margareth, a Dama de Ferro. Foi você que trouxe esse modismo neoliberal para o Brasil, não foi? Veja lá, hein? Se forem privatizar essa joça, sei lá o que vai ser de você.

Curioso que não se tenha especulado jamais sobre o gênero do meteorito que, afinal de contas era uma pedra, porém, et pour cause, sem coração. Sua resposta foi impertinen­te como de costume:

– Roberto, na verdade, o meu emprego está garantido por uma questão de meritocrac­ia. Você é quem corre perigo. Essa encrenca lhe pertence.

– Ora, não me venha com ameaças, a universida­de é um espaço de autonomia e de resistênci­a. Eu fui eleito por alunos, funcionári­os e professore­s. Minha demissão seria puro autoritari­smo.

Assim falando, o reitor já se esgueirava para fora do recinto, gesticulan­do irritado, para não ouvir, em resposta, os resmungos do Bendegó, que falava sobre Montesquie­u, cuja tese acerca da separação de poderes não era para criar países dentro de um país, e que o Judiciário não tinha autoridade para fixar seus próprios salários, tampouco a UFRJ, e que só numa casa de loucos alguém entrega um orçamento de R$ 3 bilhões para uma governança de diretório acadêmico.

‘O meu emprego está garantido por uma questão de meritocrac­ia’, disse o meteorito Bendegó

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