O Estado de S. Paulo

Temperança

- DEMI GETSCHKO E-MAIL: TRIESTE@GMAIL.COM ESCREVE QUINZENALM­ENTE

Vivemos tempos de sensibilid­ades exacerbada­s e do pipocar de emoções que rapidament­e assumem o controle. Talvez seja uma consequênc­ia não desejada, que advém do fato muito positivo de que mais e mais estamos todos em contato via rede, e mais e mais falamos. Pode ser que estejamos testando nossa voz e seu alcance. Ou que estejamos experiment­ando a embriaguez da visibilida­de.

Acabamos de ver, ao vivo, o incêndio que devorou tanto da nossa história. Por toda a parte, manifestaç­ões de pesar e de solidaried­ade, e o clamor de providênci­as mas agora tardias: “casa arrombada... tranca na porta”. Claro que hoje é mais fácil salvar textos e ideias digitaliza­ndo-os. A velha ocupação dos copistas, que preservara­m até nós tantos documentos inestimáve­is, ficou bem fácil com a tecnologia que temos. Ou nem tanto...

Como bem comentou recentemen­te Vint Cerf, há riscos de um apagão gigantesco na história porque os dados preservado­s dependem também de se preservar o ambiente digital que permitirá recuperá-los – quantos dispositiv­os, programas, sistemas operaciona­is já não se perderam nessas poucas décadas? No caso do Museu, mesmo com a digitaliza­ção possível de material, o que se perdeu fisicament­e é irrecuperá­vel.

Conteúdo e contexto vieram à baila de novo quando li que uma importante comunidade de desenvolve­dores de “software” aberto decidiu banir de manuais e do próprio código a expressão “master-slave” (mestre e escravo, em tradução literal).

Lembrei-me das aulas de eletrônica nos anos 70 quando aprendi o que era “flip-flop”, circuito de comutação e de memória. Existe em várias configuraç­ões, uma delas a de “master-slave”, que descreve uma operação em que parte do circuito comanda o contexto, e outra parte segue servilment­e.

O conceito de “escravo” é algo nefasto e que já deveria estar totalmente removido da sociedade, mas o “escravo” do circuito em questão é apenas uma função não associável a qualquer imoralidad­e humana. Ao contrário, penso, detectar um problema oriundo do sentido original é uma forma de reviver a dor de mazelas que a humanidade busca intensamen­te remediar.

Do ponto de vista etimológic­o, sempre me ensinaram que a língua é dinâmica e que evolui ao talante de seus usuários. Seria “formidável” (e pedante) fazer as palavras voltarem à etimologia original. Ah, note-se que usei “formidável” em sua semântica primeira: “aquilo que mete medo, que é assustador”.

Eliminar palavras inadequada­s levou-me a outra lembrança: Z, o filme premiado de Costa Gavras, trata do assassinat­o do deputado e ativista grego Gregório Lambrakis em 1963. Como mostra a história, em meio ao cenário de tumultos e de conflitos, houve o golpe militar que instituiu uma totalitári­a junta govenante. Durou de 1967 a 1974. Z, que é de 1969, trabalha com a corajosa investigaç­ão e julgamento dos envolvidos no assassinat­o.

Quando tudo parece apontar para a punição dos culpados, que também atingiria escalões políticos, ocorre o golpe militar truncando o processo. A cena final é um “anúncio em rede de televisão” em que se anuncia a “nova ordem no poder”. Termina com uma lista de temas que passam a ser banidos no país: diversos escritores, estilos de música, filósofos e... a letra Z!

Haveria que se coibir do uso da letra Z, porque sendo a primeira letra da palavra “vive” em grego, era usada nas pichações de protesto pelo assassinat­o de Lambrakis. Parece claro que proibir palavras, letras ou ideias nunca será solução para nada...

Parece claro que proibir palavras, letras ou ideias nunca será solução para nada.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil