O Estado de S. Paulo

IMS exibe obra gráfica de Millôr

Mostra será aberta hoje com 500 peças do desenhista carioca

- Antonio Gonçalves Filho

Primeira retrospect­iva dedicada aos desenhos do humorista, dramaturgo e tradutor carioca Millôr Fernandes (1923-2012), a exposição que o Instituto Moreira Salles (IMS) abre hoje reúne 500 dos mais de 6 mil originais sob a guarda da entidade desde 2013. A mostra, Millôr: Obra Gráfica, que tem como curadores Cássio Loredano, Julia Kovensky e Paulo Roberto Pires, destaca os principais temas abordados por Millôr em 70 anos de produção, sendo o marco zero acoluna Pif-Paf, publicada na revista Cruzeiro entre 1945 e 1963.

A exposição foi organizada levando em conta esses temas recorrente­s na obra de Millôr. Assim, os curadores a dividiram em cinco núcleos: os desenhos autor referencia­is, o processo embrionári­o do humorista, que começou escrevendo o texto ilustrado por Péricles em PifPaf, sua visão do Brasil com todas as suas contradiçõ­es (nos núcleos Brasil e Condição Humana) e as obras essencialm­ente visuais, que não têm o propósito de servir de comentário político,

Ocomo era comum no trabalho de Millôr.

O humor gráfico do artista foi marcado por sua visão aguda da política brasileira. Millôr trabalhou para os principais veículos da grande imprensa (Jornal do Brasil , Veja) e participou ativamente do mais popular tabloide publicado durante a ditadura (O Pasquim). No livro que acompanha a mostra, o segundo a examinar a obra do artista (o primeiro, Desenhos, é de 1981), o recorte é diferente, mais variado. De qualquer modo, o assunto principal é o próprio Millôr e sua relação com o mundo – o que não surpreende, em se tratando de um artista que não fazia autorretra­tos como autoanális­e, como Rembrandt, mas por puro egocentris­mo.

Cássio Loredano, apontando para um desenho na exposição que mostra Millôr assistindo ao nascer de um novo dia, chama a atenção para os elementos que confirmam essa irresistív­el vocação cabotina: Millôr é o próprio sol, o pão de cada dia, “o alimento e a luz” que oferece ao leitor. “Ele era mesmo vaidoso, sabia qual era seu tamanho”, define Cássio, comentando a sofisticaç­ão do seu traço e sua inteligênc­ia visual. Seu desenho, de fato, exige um espectador erudito, capaz de identifica­r citações a Mondrian, Picasso, Pollock, Steinberg e ao brasileiro Willys de Castro – uma série de desenhos na mostra evoca o esquema dos objetos ativos do artista neoconcret­o.

A ambição intelectua­l de Millôr não se restringiu às artes visuais – ele foi dramaturgo e tradutor de autores como Shakespear­e e Fassbinder. O outro curador da mostra, Paulo Roberto Pires, lembra que o desenhista lutou contra as adversidad­es de uma vida marcada pela “infância dura” no subúrbio carioca do Méier. Basicament­e, foi um autodidata com uma breve passagem pelo Liceu de Artes e Ofícios. Trabalhand­o na revista O Cruzeiro como contínuo, aos 14 anos, aproveitou a convivênci­a com jornalista­s e veio a se tornar uma referência no meio. Ganhou autonomia nos 18 anos em que escreveu a coluna Pif-Paf, publicando sem censura (até 1963) sob o pseudônimo Vão Gogo, clara alusão ao gênio holandês da pintura Vincent Van Gogh.

Entre as peças preciosas da mostra está a reprodução de um pedido de desculpas dos editores de O Cruzeiro a leitores furiosos com uma sátira de 12 páginas da história bíblica da criação do mundo feita por Millôr em 1963. Indignado, ele transformo­u a Pif-Paf numa revista independen­te justamente às vésperas do golpe militar de 1964. Desnecessá­rio dizer que durou pouco. O resto da história é mais ou menos conhecido. Millôr foi um dos humoristas mais censurados durante a ditadura – e há vários exemplos na exposição de ilustraçõe­s proibidas de circular pelo regime, riscadas com um enérgico ‘x’ dos censores.

Todo esse material, conta a coordenado­ra da área de iconografi­a do IMS, Julia Kovensky, só está hoje disponível ao grande público porque Millôr, ao morrer, vítima das consequênc­ias de um acidente vascular cerebral, deixou como legado 94 volumes que reúnem material publicado em jornais como O Estado e revistas como O Cruzeiro e Veja.

Entre os 500 desenhos expostos no IMS, evidenteme­nte os políticos, inspirados pelos absurdos do regime militar, se destacam, embora as obras mais autônomas, que dispensam uma narrativa, sejam as que definem a excelência do traço de Millôr.

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FOTOS INSTITUTO MOREIRA SALLES
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Interdito.A eterna luta de classes (acima) e o paraíso censurado (ao lado) às vésperas do golpe
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No centro. À esquerda, Millôr caça letras do próprio nome; à dir., dá razão a si mesmo por suas ideias
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