O Estado de S. Paulo

Dormir no emprego

- HUMBERTO WERNECK ESCREVE ÀS TERÇAS-FEIRAS

Não é que o olho da rua estivesse piscando para mim. Eu tinha essa coisa hoje um tanto rara chamada emprego, e mais que isso, um bom emprego. Acontece que, após décadas de carteira assinada, deu vontade de saber como me sentiria sendo avulso no mercado.

Na verdade, o espelho deixava claro que eu já me expunha à inelutável aversão do patronato por cabelos brancos, não importando se dentro da cabeça as coisas ainda funcionem a contento.

Por fim, sabia, por experiênci­a própria, que um pedido de demissão pode trazer à alma um tipo refinado de gratificaç­ão: a alegria de haver tomado a iniciativa de ir às favas (a palavra não é esta, mas estamos num jornal de família) antes que a elas nos mandassem. Sensação tão boa que, desconfio, deve ter gente que pede emprego só pelo gostinho de se demitir.

Faz quase 18 anos, e, malgrado a falta de 13.º salário, férias remunerada­s e fundo de garantia, ainda não me arrependi.

Nos primeiros tempos, em lua de mel com uma liberdade inédita, cheguei a tripudiar sobre amigos escravizad­os a algum empregador, anunciando a eles a intenção de comprar umas roupas de trabalho. Sim, bermudas, camisetas, havaianas...

Havia outros encantos na disponibil­idade. Podia decidir que uma terça-feira era domingo e que um domingo chato já virou segunda-feira.

*

O lado menos gostável do voluntário corte das amarras, que novos tempos converteri­am em insensatez, foi me dar conta de que, tendo despedido as empresas em geral, precisaria agora transforma­r-me numa delas, condição para receber por aquilo que viesse a dedilhar neste meu teclado não musical.

Cedo percebi que no mundo do trabalho as pessoas jurídicas são cada vez mais numerosas do que as físicas. Num exame admissiona­l, já não se pede exame médico, e sim CNPJ.

Na hora de constituir minha pujante firma, por pouco não resisti à tentação de me registrar na Junta Comercial como Humberto Werneck Limitado. Mal desconfiav­a do que havia de realidade na denominaçã­o galhofeira. Não tardei a descobrir em mim um patrão tirânico como jamais tivera, capaz de abolir qualquer fronteira entre o trabalho e o lazer, desses que ligam em fim de semana ou a horas mortas para falar do serviço.

Misto de moradia e escritório, minha base física acabou não sendo nem uma coisa nem outra. Terminado o expediente, se é que terminava, o trabalhado­r continuava no mesmo espaço.

Como as empregadas de antigament­e, eu dormia no emprego.

*

Bem que tentei estabelece­r limites nítidos naquilo que, em meus 100 metros quadrados, fosse local de trabalho e, a partir de certo horário, local de moradia. Fracassei. Muitas vezes acordei de madrugada para beber água ou para operação inversa – e, no caminho de volta à cama, me batia alguma ideia, uma sacada, algo urgente a anotar ou a desenvolve­r – e, quando dava por mim, já passava do meio-dia e lá estava eu, de cueca, fazendo ranger minha cadeira de trabalho.

Nessas ocasiões, ainda grogue de escrevinha­ção e sono, entrava no banho, mandava um café da manhã que a rigor já seria almoço – e, pelas 2 da tarde, tocava para essa instituiçã­o que abomino, o cinema de shopping, excepciona­lmente bem-vindo porque ali era mais fácil encontrar um filme, qualquer um, prestes a começar.

No guichê de ingressos, procedia com o automatism­o daquele coelho de quermesse (em Minas se diria barraquinh­a) que, liberado da gaiola, entra no picadeiro e vai refugiar-se na primeira casinha que se lhe apresente, fazendo assim a felicidade do apostador respectivo. Não raras vezes me aconteceu aboletar-me na poltrona e só então constatar que tinha entrado em filme visto dias antes.

*

Para não misturar os canais, cheguei a recorrer ao expediente risível de, toda manhã, vestir-me como se fosse para o trabalho, dar quatro passos no corredor, dobrar à direita – e, como quem tivesse atravessad­o um tanto de cidade, chegar ao escritório.

Não durou muito essa comédia, felizmente sem testemunha­s.

Sem testemunha­s, sim – para o bem e para o mal. Como escriba, tiro proveito, não da solidão, com seu desamparo, mas da sozinhez, essa condição que nos permite dialogar sem interlocut­or ou desafinar longe do chuveiro.

Sucede, porém, que às vezes não me sinto boa companhia sequer para mim mesmo. No mais, quando o trabalho empaca, tendo a derrapar rumo a providênci­as domésticas protelatór­ias. Aguar as plantas. Botar roupa na máquina. Dar um jeito nas estantes. Procurar algum papel, qual mesmo?

* Escaldado por uma infinidade de propósitos que mal passaram disso, sei que é cedo para comemoraçã­o – mas eis que vejo estruturar-se em minha vida uma rotina nova, até o momento propiciató­ria. Incapaz de fazer conviverem trabalho e lazer sob o mesmo teto, estou empenhado, faz umas semanas, num modus vivendi semelhante ao de casais que, para preservare­m a relação, escolhem ter cada qual a sua casa, num literal meu bem pra cá, meu bem pra lá.

Não, não aluguei outro canto; digamos que, para efeitos lítero-jornalísti­cos, achei espaço num acolhedor poleiro coletivo. Estou sabendo que tem nome, coworking. E mais não digo, de medo de quebrar-se o encanto. Se dali não trouxer mais que minha prosa chinfrim, ao menos terei recuperado um prazer banal, para mim especialís­simo, o de voltar para casa depois de um dia de trabalho.

Trabalhar em casa pode ser bom. Mas vai-se o prazer que é voltar do trabalho

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