Colégios se antecipam à BNCC do ensino médio
Disciplinas optativas já fazem parte da grade de algumas instituições em São Paulo
O que fazer para oferecer um ensino que faça sentido à geração Z e, ao mesmo tempo, prepare esses jovens para os novos desafios do mercado de trabalho? A receita não é fácil. Nem está pronta. Enquanto continuam as discussões da Base Nacional Comum Curricular para a última etapa da educação básica, as escolas já começam a se preparar para cumprir o que prevê a lei que instituiu o ensino médio flexibilizado. Quando entrar em vigor, o aluno terá 60% da carga horária destinada à parte comum e, nos 40% restantes, os estudantes poderão escolher conteúdos organizados em cinco itinerários formativos.
“Estamos fazendo uma mudança com o trem andando”, compara Silvio Freire, diretor do ensino médio do Colégio Santa Maria. Como a cada dez anos a escola revê seu Projeto Político Pedagógico (PPP), tem aproveitado este momento para refazer o documento a partir do que prevê a base nova. “Como a BNCC define que a escola tem de se estruturar em competências e habilidades, tivemos de reformular todos os planos de curso, repensar cada uma das disciplinas.”
Atualmente, a instituição já tem um núcleo comum no ensino médio, com disciplinas básicas como Matemática, Português, Física e Biologia, e um núcleo diversificado, com as optativas. Com a BNCC, a escola se prepara para enquadrar esse conteúdo opcional nos chamados itinerários formativos. Para que elas ocupem 40% da carga horária e não haja prejuízo no aprendizado das disciplinas tradicionais, provavelmente os alunos terão aulas no contraturno quatro vezes por semana, em vez de duas.
“Já temos aula de mídias di-
gitais, direito internacional, astrofísica e outros assuntos, que representam uma parcela pequena. Agora poderemos ampliar o cardápio. Também aumentaremos muito as aulas práticas, o que fará o aluno se interessar muito mais”, resume Freire.
Por outro lado, ressalva o pedagogo, a BNCC amplia as opções, mas não prevê um ensino personalizado, como às vezes a propaganda do governo dá a impressão de que será, acredita. “Os pais veem a propaganda na televisão e vêm com a expectativa de que o filho será atendido em sua especificidade. Mas isso não é possível. Tenho cinco itinerários e 540 alunos. Não dá para ser um currículo para cada um.”
Para ajustar as expectativas, todo o processo de adaptação da escola está sendo comunicado aos pais. Recentemente, aqueles com filhos no ensino médio e nos anos finais do fundamental foram convidados para uma apresentação. A administradora de empresas Carla Lopes, mãe de Amanda, que cursa o 9.º ano do ensino fundamental, gostou do que ouviu. “Acho que a mudança é bem-vinda e vai motivar os alunos a se tornarem mais proativos, por estarem em um curso mais alinhado com seus interesses. Só é preciso cuidado para não focar muito na prática, porque os conteúdos voltados para a parte comportamental, como Artes, Educação Física e Filosofia, são fundamentais.”
Sem alterar o DNA. Na maioria das escolas privadas, as adaptações têm sido feitas de forma a manter o DNA da escola. O Colégio Equipe, por exemplo, já trabalha com áreas do conhecimento e a partir delas é que deve definir os itinerários. “Já fazíamos um ensino médio com grandes diretrizes, focando no que achamos importante e indo além do conteúdo exigido pela Fuvest e Enem”, afirma Luciana Fevorini, diretora da instituição.
De vocação humanista, o colégio já trabalha seis formações temáticas que poderão integrar os futuros itinerários: história e cinema; astronomia; juventude e identidade, São Paulo: centro e periferia; filosofia e religião; e arte contemporânea. Todas nascem de discussão curricular ou interesses dos alunos, como o treinamento esportivo ou a formação de um coletivo feminista.
Sem amarras de um currículo estanque, o Projeto Político Pedagógico da escola prevê que o aluno tenha contato com muitos conteúdos e possibilidades antes de decidir no que quer se aprofundar. “Queremos que ele teste pra saber o que quer e o que não quer, o que gosta e o que não gosta. O que temo e não podemos deixar acontecer nesse caminho proposto pela BNCC é que sejam escolhas de especializar e não integrar conhecimentos”, afirma Luciana. Com duas turmas de ensino médio, ela estima que a escola vai oferecer dois ou três percursos e prevê um intercâmbio de alunos. “Imagino que vá ocorrer migração de estudantes entre as escolas, para cursarem itinerários formativos diferentes.”
Flexibilidade. Na Escola Lourenço Castanho, que tem nove salas do ensino médio, os componentes eletivos já estão agrupados dentro dos itinerários propostos pela BNCC. “Nossa estrutura já está condi-
zente com o que a reforma propõe. Talvez a gente tenha de ampliar a obrigatoriedade, mas os cursos são separados por área, nas quatro grandes áreas da base. Só para a formação técnica é que teremos de fazer alguma parceria”, explica Alexandre Abbatepaulo, diretor-geral da instituição.
Os conteúdos de astronomia, clube de química e construção de materiais para o ensino de Física vão ao encontro dos itinerários de Matemática e Ciências da Natureza. Em sintonia com Ciências Humanas, a escola oferece preparação para fóruns e debates, já a área de Linguagens é contemplada com atividades de produção musical e teatro.
Tudo isso hoje é feito de forma flexível, um ponto que, de acordo com Abbatepaulo, deveria ser contemplado na BNCC. “O aluno vai amadurecendo sua escolha, suas afinidades. Se ele ficar preso a um itinerário desde a primeira série, cria uma amarra perigosa. Ele precisa poder circular e passar por outros itinerários.”
Como esse ponto ainda não está definido – a BNCC está em discussão no Conselho Nacional de Educação –, a escola tem promovido encontro de profissionais com seus estudantes dos anos finais do ensino fundamental. A design de joias Marcela Haddad, mãe de Isabela, aluna do 9.º ano, fez questão que a filha participasse. “Ela está mais voltada para Humanas, com um certo interesse em moda.” Apesar de considerar positivos muitos aspectos da reforma, ela se preocupa com a definição do itinerário formativo, decisão que considera precoce. “É escolha séria para as crianças de 14 anos. Elas não têm a opinião 100% formada e acho que a escola tem mesmo de ajudar nessa questão.”
Se não houver flexibilidade, alerta o pedagogo Silvio Bock, corre-se o risco de antecipar ainda mais a escolha profissional, que já considera precoce no Brasil. Isso poderia, segundo o especialista, levar a uma multidão de alunos que escolheram um itinerário, decidiram prestar vestibular para outra área e chegariam ao exame sem o repertório necessário. “Questiono o ensino enciclopédico que os vestibulares exigem, mas não temos notícia de que isso vai mudar. Então, não podemos deixar os alunos à própria sorte.”
Ensino público. Um olhar para a rede pública, que concentra a maioria das matrículas do médio, mostra que o caminho para a implementação do ensino flexibilizado esbarra em questões complexas. Dados do Censo Escolar de 2016 mostram que 53% municípios do País possuem somente uma escola com ensino médio regular ou educação profissionalizante. São 2.967 cidades nessa situação, o que evidencia o desafio da implementação dos itinerários formativos propostos.
“Por isso, o modelo de flexibilização precisa ser muito bem pensado e as secretarias de Educação muito bem instrumentalizadas para entender como flexibilizar o currículo e criar as possibilidades dos jovens construírem os seus percursos formativos em um município que só tem uma escola de ensino médio”, destaca Cláudia Santa Rosa, secretária de Educação e da Cultura do Rio Grande do Norte.
Além da questão dos itinerários, acrescenta a especialista, outras engrenagens do sistema devem estar afinadas: é preciso preparar os docentes na formação inicial e na formação continuada a partir desse novo parâmetro, garantir que os materiais didáticos estejam alinhados e, por fim, ajustar as avaliações nacionais para que fiquem coerentes com as novas diretrizes.
Para acertar as arestas, a educadora defende que as redes adotem a sugestão do MEC de implementar pilotos em 2019. “É uma reforma que muda tudo. Ao diversificar e ampliar o conteúdo, aumenta o número de professores, cresce o tempo dentro da escola, muda questões até do transporte escolar”, afirma Cláudia. “São alterações complexas, mas que vão valer a pena quando percebermos que a reforma pode combater a evasão escolar e instigar a injeção de recursos para laboratórios e equipamentos. É preciso fazer que o jovem sinta que vale a pena estar na escola.”