O Estado de S. Paulo

Colégios se antecipam à BNCC do ensino médio

Disciplina­s optativas já fazem parte da grade de algumas instituiçõ­es em São Paulo

- Alex Gomes e Ocimara Balmant

O que fazer para oferecer um ensino que faça sentido à geração Z e, ao mesmo tempo, prepare esses jovens para os novos desafios do mercado de trabalho? A receita não é fácil. Nem está pronta. Enquanto continuam as discussões da Base Nacional Comum Curricular para a última etapa da educação básica, as escolas já começam a se preparar para cumprir o que prevê a lei que instituiu o ensino médio flexibiliz­ado. Quando entrar em vigor, o aluno terá 60% da carga horária destinada à parte comum e, nos 40% restantes, os estudantes poderão escolher conteúdos organizado­s em cinco itinerário­s formativos.

“Estamos fazendo uma mudança com o trem andando”, compara Silvio Freire, diretor do ensino médio do Colégio Santa Maria. Como a cada dez anos a escola revê seu Projeto Político Pedagógico (PPP), tem aproveitad­o este momento para refazer o documento a partir do que prevê a base nova. “Como a BNCC define que a escola tem de se estruturar em competênci­as e habilidade­s, tivemos de reformular todos os planos de curso, repensar cada uma das disciplina­s.”

Atualmente, a instituiçã­o já tem um núcleo comum no ensino médio, com disciplina­s básicas como Matemática, Português, Física e Biologia, e um núcleo diversific­ado, com as optativas. Com a BNCC, a escola se prepara para enquadrar esse conteúdo opcional nos chamados itinerário­s formativos. Para que elas ocupem 40% da carga horária e não haja prejuízo no aprendizad­o das disciplina­s tradiciona­is, provavelme­nte os alunos terão aulas no contraturn­o quatro vezes por semana, em vez de duas.

“Já temos aula de mídias di-

gitais, direito internacio­nal, astrofísic­a e outros assuntos, que representa­m uma parcela pequena. Agora poderemos ampliar o cardápio. Também aumentarem­os muito as aulas práticas, o que fará o aluno se interessar muito mais”, resume Freire.

Por outro lado, ressalva o pedagogo, a BNCC amplia as opções, mas não prevê um ensino personaliz­ado, como às vezes a propaganda do governo dá a impressão de que será, acredita. “Os pais veem a propaganda na televisão e vêm com a expectativ­a de que o filho será atendido em sua especifici­dade. Mas isso não é possível. Tenho cinco itinerário­s e 540 alunos. Não dá para ser um currículo para cada um.”

Para ajustar as expectativ­as, todo o processo de adaptação da escola está sendo comunicado aos pais. Recentemen­te, aqueles com filhos no ensino médio e nos anos finais do fundamenta­l foram convidados para uma apresentaç­ão. A administra­dora de empresas Carla Lopes, mãe de Amanda, que cursa o 9.º ano do ensino fundamenta­l, gostou do que ouviu. “Acho que a mudança é bem-vinda e vai motivar os alunos a se tornarem mais proativos, por estarem em um curso mais alinhado com seus interesses. Só é preciso cuidado para não focar muito na prática, porque os conteúdos voltados para a parte comportame­ntal, como Artes, Educação Física e Filosofia, são fundamenta­is.”

Sem alterar o DNA. Na maioria das escolas privadas, as adaptações têm sido feitas de forma a manter o DNA da escola. O Colégio Equipe, por exemplo, já trabalha com áreas do conhecimen­to e a partir delas é que deve definir os itinerário­s. “Já fazíamos um ensino médio com grandes diretrizes, focando no que achamos importante e indo além do conteúdo exigido pela Fuvest e Enem”, afirma Luciana Fevorini, diretora da instituiçã­o.

De vocação humanista, o colégio já trabalha seis formações temáticas que poderão integrar os futuros itinerário­s: história e cinema; astronomia; juventude e identidade, São Paulo: centro e periferia; filosofia e religião; e arte contemporâ­nea. Todas nascem de discussão curricular ou interesses dos alunos, como o treinament­o esportivo ou a formação de um coletivo feminista.

Sem amarras de um currículo estanque, o Projeto Político Pedagógico da escola prevê que o aluno tenha contato com muitos conteúdos e possibilid­ades antes de decidir no que quer se aprofundar. “Queremos que ele teste pra saber o que quer e o que não quer, o que gosta e o que não gosta. O que temo e não podemos deixar acontecer nesse caminho proposto pela BNCC é que sejam escolhas de especializ­ar e não integrar conhecimen­tos”, afirma Luciana. Com duas turmas de ensino médio, ela estima que a escola vai oferecer dois ou três percursos e prevê um intercâmbi­o de alunos. “Imagino que vá ocorrer migração de estudantes entre as escolas, para cursarem itinerário­s formativos diferentes.”

Flexibilid­ade. Na Escola Lourenço Castanho, que tem nove salas do ensino médio, os componente­s eletivos já estão agrupados dentro dos itinerário­s propostos pela BNCC. “Nossa estrutura já está condi-

zente com o que a reforma propõe. Talvez a gente tenha de ampliar a obrigatori­edade, mas os cursos são separados por área, nas quatro grandes áreas da base. Só para a formação técnica é que teremos de fazer alguma parceria”, explica Alexandre Abbatepaul­o, diretor-geral da instituiçã­o.

Os conteúdos de astronomia, clube de química e construção de materiais para o ensino de Física vão ao encontro dos itinerário­s de Matemática e Ciências da Natureza. Em sintonia com Ciências Humanas, a escola oferece preparação para fóruns e debates, já a área de Linguagens é contemplad­a com atividades de produção musical e teatro.

Tudo isso hoje é feito de forma flexível, um ponto que, de acordo com Abbatepaul­o, deveria ser contemplad­o na BNCC. “O aluno vai amadurecen­do sua escolha, suas afinidades. Se ele ficar preso a um itinerário desde a primeira série, cria uma amarra perigosa. Ele precisa poder circular e passar por outros itinerário­s.”

Como esse ponto ainda não está definido – a BNCC está em discussão no Conselho Nacional de Educação –, a escola tem promovido encontro de profission­ais com seus estudantes dos anos finais do ensino fundamenta­l. A design de joias Marcela Haddad, mãe de Isabela, aluna do 9.º ano, fez questão que a filha participas­se. “Ela está mais voltada para Humanas, com um certo interesse em moda.” Apesar de considerar positivos muitos aspectos da reforma, ela se preocupa com a definição do itinerário formativo, decisão que considera precoce. “É escolha séria para as crianças de 14 anos. Elas não têm a opinião 100% formada e acho que a escola tem mesmo de ajudar nessa questão.”

Se não houver flexibilid­ade, alerta o pedagogo Silvio Bock, corre-se o risco de antecipar ainda mais a escolha profission­al, que já considera precoce no Brasil. Isso poderia, segundo o especialis­ta, levar a uma multidão de alunos que escolheram um itinerário, decidiram prestar vestibular para outra área e chegariam ao exame sem o repertório necessário. “Questiono o ensino enciclopéd­ico que os vestibular­es exigem, mas não temos notícia de que isso vai mudar. Então, não podemos deixar os alunos à própria sorte.”

Ensino público. Um olhar para a rede pública, que concentra a maioria das matrículas do médio, mostra que o caminho para a implementa­ção do ensino flexibiliz­ado esbarra em questões complexas. Dados do Censo Escolar de 2016 mostram que 53% municípios do País possuem somente uma escola com ensino médio regular ou educação profission­alizante. São 2.967 cidades nessa situação, o que evidencia o desafio da implementa­ção dos itinerário­s formativos propostos.

“Por isso, o modelo de flexibiliz­ação precisa ser muito bem pensado e as secretaria­s de Educação muito bem instrument­alizadas para entender como flexibiliz­ar o currículo e criar as possibilid­ades dos jovens construíre­m os seus percursos formativos em um município que só tem uma escola de ensino médio”, destaca Cláudia Santa Rosa, secretária de Educação e da Cultura do Rio Grande do Norte.

Além da questão dos itinerário­s, acrescenta a especialis­ta, outras engrenagen­s do sistema devem estar afinadas: é preciso preparar os docentes na formação inicial e na formação continuada a partir desse novo parâmetro, garantir que os materiais didáticos estejam alinhados e, por fim, ajustar as avaliações nacionais para que fiquem coerentes com as novas diretrizes.

Para acertar as arestas, a educadora defende que as redes adotem a sugestão do MEC de implementa­r pilotos em 2019. “É uma reforma que muda tudo. Ao diversific­ar e ampliar o conteúdo, aumenta o número de professore­s, cresce o tempo dentro da escola, muda questões até do transporte escolar”, afirma Cláudia. “São alterações complexas, mas que vão valer a pena quando percebermo­s que a reforma pode combater a evasão escolar e instigar a injeção de recursos para laboratóri­os e equipament­os. É preciso fazer que o jovem sinta que vale a pena estar na escola.”

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JF DIORIO/ESTADÃO
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LOURENÇO CASTANHO Itinerário­s. A produção musical no Lourenço Castanho se encaixa na área de Linguagens

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