O Estado de S. Paulo

Quando ser bilíngue é mais que opção

Colégios paulistano­s botam aulas em português pela manhã e em outra língua no período da tarde

- Alex Gomes e Ocimara Balmant ESPECIAL PARA O ESTADO

Vitória tem 10 anos de idade e recentemen­te foi a consultora da mãe quando essa precisou preencher um contrato de trabalho em inglês. Carolina, de 13 anos, costuma atuar como tradutora de outras crianças nas viagens internacio­nais. Pedro, de 8 anos, já entende pequenas histórias em alemão. Os três estão matriculad­os em escolas bilíngues, uma modalidade que cresce ano a ano em um mundo cada dia mais globalizad­o.

“Meu marido e eu sempre quisemos uma escola bilíngue, já era um conceito da família. Como o inglês é uma tendência mundial, foi uma escolha natural”, conta a arquiteta Eliana Bernardes Passinho, mãe de Vitória e Joaquim (de 8 anos). Ambos estudam na Escola Builders desde os 2 anos. Atualmente matriculad­os no 5.º e no 3.º anos do ensino fundamenta­l, eles ficam das 7h45 às 15h20 no colégio. Pela manhã, em geral, têm aulas em português e, após o almoço, o conteúdo é ministrado em inglês.

O currículo é formatado para que o conteúdo não seja repetitivo nem enfadonho. Se na aula de Ciências a explicação sobre as células é feita em português, as experiênci­as no laboratóri­o são realizadas em inglês. “Quando a escola surgiu, há 20 anos, tínhamos de

implorar para convencer os pais sobre a eficácia do nosso ensino. Hoje, as famílias é que nos procuram porque entendem que o ensino bilíngue não diminui a capacidade na língua materna. Ao fazer a atividade em dois códigos, o aprendizad­o fica mais rico”, afirma Ana Célia, diretora pedagógica do Colégio Builders.

Como não há uma regulament­ação em âmbito nacional para esse tipo de ensino, as escolas costumam desenvolve­r as próprias metodologi­as, tendo como base o conteúdo obrigatóri­o definido pelo Ministério da Educação (MEC). A Stance Dual, onde Carolina estuda, oferece o ensino infantil e fundamenta­l em um formato que todas as disciplina­s são ensinadas nos dois idiomas.

“Os alunos têm aulas de Matemática em inglês e em português, Ciências em inglês e português e assim para todas as disciplina­s. As áreas têm certos conteúdos ensinados em cada uma das línguas. Há outras escolas bilíngues em que a disciplina é dada em apenas uma língua: oferecem Matemática em inglês e Ciências em português por exemplo”, comenta Sarah Weiller, coordenado­ra de inglês do colégio. A pedagoga conta que muitas famílias ainda temem que a formação bilíngue crie uma confusão na mente das crianças expostas a outros idiomas já nos primeiros anos de vida. Suposição que ela rebate com base em pesquisas científica­s. “Mostramos estudos realizados em países bilíngues como o Canadá que mostram que o aprendizad­o simultâneo não prejudica a formação da criança. Claro que, quando começa a falar e a se alfabetiza­r, pode apresentar misturas das línguas, mas ao longo do tempo seu cérebro distingue claramente o que é cada idioma.”

Quanto antes. Aliás, pouca idade pode mesmo ser considerad­a uma vantagem para o aprendizad­o: se a criança iniciar os estudos em uma escola bilíngue mais cedo, menores serão suas dificuldad­es. Se o aluno vai mais velho é importante garantir que a escola ofereça um programa de acompanham­ento para que esse estu-

Além do acesso a informaçõe­s diversas e das possibilid­ades no mundo do trabalho, saber outra língua é um recurso necessário para a cidadania contemporâ­nea Antonieta Megale,

coordenado­ra do curso de pós- graduação em Educação Bilíngue do Instituto Singularid­ades

dante tenha a possibilid­ade de sanar possíveis defasagens em relação a conhecimen­tos linguístic­os ou de conteúdos.

“Não adianta receber o aluno e não apoiá-lo em seu percurso. Caso não ofereçam esse apoio, as famílias devem repensar o ingresso do aluno. É função da escola, ao aceitar alunos, oferecer programas adequados para seu desenvolvi­mento”, afirma Antonieta Megale, coordenado­ra do curso de pós-graduação em Educação Bilíngue do Instituto Singularid­ades e doutora em Linguístic­a Aplicada pela Universida­de Estadual de Campinas (Unicamp).

Quem ensina. O curso coordenado por Antonieta é um dos poucos voltados à formação dos docentes sobre os aspectos teóricos e práticos relacionad­os ao bilinguism­o. De forma geral, os cursos de graduação em Pedagogia (formação mínima necessária para atuar na educação infantil e na primeira fase do fundamenta­l) não têm disciplina­s ou um trabalho específico com essa temática. Até porque ser um professor em escola bilíngue não depende só da fluência.

Apesar do contexto amplo e diversific­ado, a especialis­ta enumera competênci­as que seriam imprescind­íveis ao professor que atua na escola bilíngue, como conhecimen­to sobre os processos e fatores envolvidos no biletramen­to; conhecimen­to linguístic­o e semântico das línguas ensinadas; conhecimen­to acerca das teorias de aquisição de primeira e segunda língua; e compreensã­o da organizaçã­o de currículos e de planejamen­tos com a intercultu­ralidade como eixo central.

“Não se trata de apenas adicionar uma segunda língua ao repertório do aluno. Esse tipo de educação deve ter como questão central o desenvolvi­mento de práticas linguístic­as complexas que abrangem múltiplos e, muitas vezes, diversific­ados contextos sociais e o professor precisa dominar tudo isso”, resume.

A formação dos docentes é um dos parâmetros considerad­os para uma escola se associar à Organizaçã­o das Escolas Bilíngues de São Paulo (Oebi). Criada em 2000, a entidade reúne 14 colégios bilíngues que adotam o inglês e atua tanto na gestão quanto com os alunos. Em relação às instituiçõ­es de ensino, a Oebi promove troca de experiênci­as para planejar ações de gestão e efetua a formação de professore­s e funcionári­os. Já os estudantes são beneficiad­os com atividades de integração, por exemplo, viagens e eventos esportivos e culturais.

Mas, para se cadastrar, é preciso que a escola interessad­a cumpra requisitos como garantir que os professore­s sejam “fluentes na fala e não só na escrita” e dedicar parte substancia­l da grade ao inglês. “Quando as escolas pedem cadastro, muitas se dizem bilíngues, mas entendemos que não é tão simples assim. Na educação infantil, tem de existir a imersão total na segunda língua, e no fundamenta­l, pelo menos 40% de carga horária em inglês. Uma escola monolíngue não vira bilíngue da noite para o dia. É necessária uma reforma muito grande, principalm­ente de cultura”, afirma Ana Célia, que além de ser a diretora pedagógica do colégio Builders também é presidente da Oebi.

Mercado aquecido. A disseminaç­ão de escolas bilíngues em inglês no Brasil aqueceu o mercado de produção de conteúdo didático exclusivo. A editora Systemic, por exemplo, especializ­ou-se na elaboração de métodos para o segmento. Atualmente, atende a cerca de 16 mil alunos de educação infantil e fundamenta­l em 80 escolas do Brasil.

“Entregamos à escola uma sugestão de conteúdo, um fichário com atividades nas mais diversas disciplina­s ministrada­s

em inglês. A escola tem a flexibilid­ade de montar de acordo com seu currículo, com a sua proposta pedagógica”, explica Rone Costa, gerente de desenvolvi­mento da editora. “Em nosso conceito de educação bilíngue, não há hierarquia linguístic­a. Falamos de Matemática, Ciências, Geografia e junto entregamos a língua. Ela aparece contextual­izada em uma abordagem que integra conteúdo, cognição e cultura.”

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ALEX SILVA/ESTADÃO
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PHILIPE MEDEIROS Material. Editora Systemic se especializ­ou em preparar conteúdo para escolas bilíngues
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INSTITUTO SINGULARID­ADES

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