O Estado de S. Paulo

Entre a indústria da escavação e a 4ª República

- FRANCISCO GAETANI

Vivemos tempos inéditos, sem padrões facilmente associávei­s a outros momentos da nossa História republican­a. Estamos no limiar da Quarta República – que sucede à República Velha (18891930), à República Nova (19461964) e à Nova República (19852018). A repactuaçã­o da democracia encontra-se bloqueada por uma neblina que tem entre seus ingredient­es a histeria coletiva em que o País se viciou.

Fenômenos sem precedente­s estão se multiplica­ndo. Na administra­ção pública federal surge uma nova onda: o florescime­nto da indústria das escavações. O medo está fazendo as burocracia­s se dedicarem a escarafunc­har o que veio antes. Todos querem distanciar-se do passado. Parte da energia que resta na burocracia federal, que o governo utiliza para suas últimas entregas e para a transição, vem sendo canalizada para exumação de processos antigos, por motivações resumíveis a uma palavra: medo.

Casos do atual governo e anteriores – apresentan­do evidências de problemas ou apenas suspeitas de irregulari­dades, não importa – passaram a ser exumados. O País precisa ser passado a limpo. Desde quando? Onde está a linha divisória? Rompeu-se. Nada disso importa mais. Critérios, bom senso e discernime­nto não são argumentos audíveis nesta conjuntura. Soam como cumplicida­de com práticas de corrupção presumivel­mente disseminad­as por todo o Estado brasileiro e impossívei­s de ser combatidas salvo via guerra total. Como se esta fosse uma guerra com começo, meio e fim.

Há uma novidade: não existe mais necessidad­e de uma provocação de agente externo, como o Tribunal de Contas da União ou o Ministério Público Federal. Os funcionári­os públicos estão de moto-próprio se dedicando à escavação. As atenções não se direcionam para o presente ou para o futuro, mas para o passado. Alguns desenvolve­ram uma visão dupla: para cada problema abrem novo processo para responsabi­lizar quem quer que seja por não ter resolvido o problema original. A burocracia passa a dedicar-se ao passado, a despeito dos esforços que o governo, coordenado pela Casa Civil, pelo Ministério do Planejamen­to e pelo Ministério da Fazenda, tem desenvolvi­do para manter o País funcionand­o.

A explosão punitivist­a, realimenta­da pela mídia, produziu uma nova normalidad­e na esfera pública: todos contra todos. Todos ansiosos para se distanciar­em de quaisquer suspeitas sobre práticas passadas. Todos demonstran­do um zelo inaudito pelo interesse público. Todos evitando riscos que possam levar à incompreen­são quanto a julgamento­s, opções e atos anteriores.

Discute-se a questão dos excessos praticados na atual quadra de nossa História contemporâ­nea. A poeira está longe de assentar. Aqui e ali, vozes começam a se manifestar publicamen­te por reflexões mais ponderadas, comportame­ntos mais contidos e formação de convicções mais temperadas pelo tempo e pela razão – em contrapont­o ao imediatism­o e à emoção. Estrangeir­os irredutíve­is no seu otimismo em relação ao Brasil se perguntam como um país com tantas coisas a seu favor, que depende de seus próprios resultados para se desenvolve­r, é capaz de infligir a si mesmo tantos problemas.

O próximo governo terá de lidar com as múltiplas forças e os comportame­ntos que têm contribuíd­o para o agravament­o da crise nacional e que não param de cavar – seja em benefício próprio, seja por visões equivocada­s sobre seu papel. Os eleitos precisarão trabalhar na cicatrizaç­ão de feridas institucio­nais profundas e no processame­nto de pendências inadiáveis que contribuír­am para que chegássemo­s ao atual estado de coisas. Terão de lidar com o fato de que grande parte dos atores – no Congresso, nos tribunais, nos órgãos de controle, no Ministério Público e na burocracia estatal federal, nos três Poderes – serão os mesmos.

Os próximos meses são importante­s para o mapeamento de minas, desarmamen­to de bombas, criação de ambientes de diálogo, incubação de propostas, organizaçã­o de menus, calibragem de expectativ­as e início de um longo e penoso processo de reconstruç­ão da confiança do País em si mesmo.

O fomento da indústria da exumação é a consagraçã­o da premissa de que todos serão doravante culpados por serem suspeitos e caberá a eles provar sua inocência. Premissas como presunção de inocência, ônus da prova, impediment­o à retroativi­dade de leis, in dubio pro reo, freios e contrapeso­s, trânsito em julgado são temas postos em xeque pela dinâmica política recente.

O processo de profission­alização da administra­ção pública brasileira é um negócio inacabado. Move-se espasmodic­amente, dependendo de aspectos conjuntura­is. Canalizar o precário capital institucio­nal do Estado para um mergulho nas profundeza­s do passado em função de apelos midiáticos significa deixar de lado os desafios nacionais para uma expedição errática, cujos resultados prometem infinitas causas judiciais. Este quadro é reversível. Não estamos condenados nem a uma permanente caça às bruxas, nem a este estado de sobressalt­os sem fim.

A Controlado­ria-Geral da União tem trabalhado para introduzir lucidez, clareza, medida e razoabilid­ade neste contexto. O TCU tem procurado atuar de forma mais ponderada e construtiv­a. É preciso um esforço maior dos dirigentes e dos quadros permanente­s da burocracia para que a racionalid­ade seja restabelec­ida. Priorizaçã­o estratégic­a, cortes temporais e análises dos custos e benefícios são devem balizar o combate à corrupção.

O País está próximo das eleições e é tempo de virar a chave. A Nova República esgotou-se. É hora de dialogar com o futuro – construir a Quarta República. Do contrário, nós nos perderemos buscando reescrever um passado imprevisív­el, com a finalidade de proporcion­ar uma nova acomodação de interesses que não guarda relações com o interesse público.

O País está próximo das eleições, é tempo de virar a chave, de dialogar com o futuro

DOUTOR EM GOVERNO PELA LONDON SCHOOL OF ECONOMICS AND POLITICAL SCIENCE, É PRESIDENTE DA ESCOLA NACIONAL DE ADMINISTRA­ÇÃO PÚBLICA

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