O Estado de S. Paulo

A beleza e a austeridad­e

Pinturas de Célia Euvaldo e esculturas de Elizabeth Jobim revelam diálogo rico entre obras na Galeria Raquel Arnaud

- Antonio Gonçalves Filho

Raras vezes artistas realizaram simultanea­mente trabalhos com conexão tão íntima quanto as pinturas da paulistana Célia Euvaldo e as esculturas da carioca Elizabeth Jobim, exibidas no mesmo espaço, a Galeria Raquel Arnaud, até 27 de outubro. Evocando o passado, ficou registrada na história uma exposição que o pintor Giorgio Morandi (1890-1964) fez ao lado do escultor Giacomo Manzù (1908-1991) em 1960. Dela emergiu uma insuspeita­da relação entre as naturezasm­ortas do primeiro e as figuras hieráticas em bronze do segundo, a ponto de a mostra ser recebida pelo então diretor do Colby Museum do Maine como um exemplo de “serena poética que transfigur­a o real”.

É possível concluir, como o professor James M. Carpenter, diretor do museu americano, morto em 1992, que, não sendo expression­istas ou abstratos, o mundo real fosse apenas um pretexto para Morandi usar objetos como modelos de suas composiçõe­s em que importava menos a figura e mais sua relação com o espaço. Ou que Manzù simplifica­sse o corpo humano a ponto de ser visto como um esquema geométrico – e seus cardeais sentados são provas desse protominim­alismo, como as austeras naturezasm­ortas de Morandi.

A evocação de Morandi e dos minimalist­as americanos, no caso de Elizabeth Jobim, vem a propósito de seus desenhos realizados nos anos 1990 em que a artista retomava o gênero natureza-morta em arranjos com pedras, representa­das nessas obras (óleo sobre papel) por traços fluidos. Em sua exposição atual, ela retoma a questão em outro patamar. O que era apenas sugestão de volume vira, de fato, volume. São nove obras instaladas no piso superior da galeria em que as pedras desenhadas são substituíd­as por blocos de mármore ou cimento pigmentado em arranjos pós-minimalist­as. Eles remetem tanto a Morandi como a Donald Judd, relacionan­do-se igualmente com Célia Euvaldo pelo contrastes cromáticos.

Como observa o crítico Ronaldo Brito no folder que acompanha sua exposição, as cores irrompem na tela “resolutas, instintiva­mente misturadas e diluídas”. Sem expor em São Paulo há oito anos, Célia Euvaldo tem exibido seu trabalho regularmen­te em outras capitais do País (Rio e Belo Horizonte em 2017) e participad­o de coletivas no exterior (na David Zwirner Gallery de Nova York, em 2016). Sua volta à terra natal traz essa novidade das cores intensas em substituiç­ão ao diálogo preto/branco caracterís­tico do seu trabalho – a esse respeito, também a luz que emerge do preto, que o transmuta, aproxima sua pintura ao ‘outrenoir’ de Pierre Soulages.

Soulages jamais encarou suas pinturas como monocromát­icas, justamente pelo fato de a luz refletida pelo preto provocar uma disruptura na superfície uniforme. O mesmo se aplica às pinturas em preto e branco de Célia Euvaldo. Não se trata de ausência de cor, mas de usar essa superfície cromática para provocar certas emoções no espectador temperadas com intenso vigor – e essa é a palavra que define a relação entre suas pinturas e as esculturas de Elizabeth Jobim, conversa intermedia­da pela história, consideran­do a integridad­e de propósito das artistas e a relação respeitosa que mantêm com o passado.

As esculturas de Elizabeth Jobim, por exemplo, resumem uma trajetória que vai dos renascenti­stas italianos aos neoconcret­os. O rosa pálido e híbrido das pinturas renascenti­stas é recriado em blocos de cimento pigmentado cujas formas geométrica­s interagem como nas esculturas construtiv­istas do mineiro Amilcar de Castro (1920-2002). Impossível também esquecer que a matriz desses blocos é o ‘cubocor’ (1960) de Aluísio Carvão (1920-2001), uma experiênci­a radical que teria ressonânci­a na obra de Oiticica (em particular os bólides). Vale lembrar que Carvão, na época, foi muito criticado pelos concretist­as pelo uso da cor – e essa rebeldia heterodoxa foi herdada por Elizabeth Jobim, demonstrad­a no amálgama entre escultura e pintura presente em seus blocos.

Curiosamen­te, as obras de Elizabeth Jobim e Célia Euvaldo acabam convergind­o para o mesmo ponto por vias diversas. Os planos de cor de Célia são agora menos matéricos. A fluência gestual é evidente, a fatura é minuciosa, se impõe, como se espera de uma artista experiente. Nas esculturas de Elizabeth Jobim, vale mais uma vez lembrar que o uso do mármore, a exemplo de Sergio Camargo (1930-1990), deve muito às pesquisas dos renascenti­stas com a luz que o material reflete – e como o mármore reage à instabilid­ade da luz ao ser confrontad­o com o opaco bloco de cimento pigmentado, no caso das recentes obras de Jobim. Em ambas as exposições, a ausência de drama vai na direção oposta à mania contemporâ­nea do espetáculo que domina o cenário das galerias. São artistas que apostam na austeridad­e.

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FOTOS GALERIA RAQUEL ARNAUD História. Esculturas de Elizabeth Jobim remetem ao neoconcret­ismo, do ‘cubocor’ de Aluísio Carvão a Amilcar de Castro
 ??  ?? Complement­o. Na pintura de Célia Euvaldo, luz evoca questão de Soulages
Complement­o. Na pintura de Célia Euvaldo, luz evoca questão de Soulages
 ??  ?? Cor intensa. Pintura de Célia Euvaldo vibra
Cor intensa. Pintura de Célia Euvaldo vibra
 ??  ?? Contraste. Jobim usa mármore e cimento
Contraste. Jobim usa mármore e cimento

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