O Estado de S. Paulo

Ameaça da esquerda à democracia

- FAREED ZAKARIA / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Por vários anos, estudiosos vêm afirmando que o mundo vive uma “recessão democrátic­a”. E a transição dos países para a democracia desacelero­u, cessou e, em alguns lugares, seguiu caminho inverso. E observaram também um esvaziamen­to da democracia no mundo industrial­izado. Quando refletimos a respeito, nos preocupamo­s com Donald Trump, seus ataques contra juízes, contra a imprensa livre e o seu próprio Departamen­to de Justiça. Mas vemos também uma corrosão preocupant­e de uma norma democrátic­a fundamenta­l no campo da esquerda.

Hoje, são comuns os clamores da esquerda no sentido de ser negado a figuras controvers­as o direito a uma plataforma para expressare­m suas opiniões. Universida­des retiraram convites de palestras feitos a personalid­ades como Condoleezz­a Rice e Charles Murray. Outras se viram impedidas de possibilit­ar ou permitir que convidados conservado­res se expressass­em, diante de protestos sufocando os eventos.

Uma controvérs­ia similar envolve agora Steve Bannon, que nos últimos meses tem aparecido no rádio e na imprensa, incluindo uma entrevista que fiz com ele na CNN. Algumas pessoas alegam que Bannon, desde que deixou o governo, se tornou uma figura sem importânci­a e, portanto, não deveria ter mais espaço para se pronunciar. Mas, se fosse o caso, segurament­e a mídia, que afinal é um setor com fins lucrativos, notaria a falta de interesse público e não o convidaria.

A realidade é que as pessoas que dirigem a Economist,o Financial Times,o programa 60 Minutes, a New Yorker,e muitas outras organizaçõ­es de mídia que recentemen­te entrevista­ram Bannon sabem que ele é um ideólogo inteligent­e e influente, um homem que criou a maior plataforma de mídia para a nova direita, geriu uma campanha bem sucedida para Trump antes de trabalhar na Casa Branca e continua a expressar e incentivar o populismo que está em ascensão em todo o mundo ocidental.

Ele pode estar desfrutand­o dos seus 15 minutos de fama que desaparece­rão, mas, no momento, é uma figura absorvente. O temor real de muita gente da esquerda não é de que Bannon seja uma figura opaca e desinteres­sante, mas o oposto – de que suas ideias são sedutoras para um grupo muito grande de pessoas. Daí a solução dos seus detratores: não dar a ele um espaço para se expressar, esperando que suas ideias desapareça­m. Mas não é o caso. Na verdade, ao tentar sufocar Bannon e outros da direita, os liberais contribuem para que suas ideias pareçam mais robustas. Os esforços dos países comunistas para silenciar as ideias capitalist­as funcionara­m?

Os liberais devem ser lembrados da origem da sua ideologia. Em 1950, quando governos em todo o mundo ainda eram bastante repressivo­s – proibindo livros, censurando comentário­s e prendendo pessoas por suas crenças – John Stuart Mill explicou na sua obra seminal, On Liberty (Sobre a Liberdade), que a proteção contra os governos não era suficiente. “É necessária também uma proteção contra a tirania da opinião e dos sentimento­s dominantes; contra a tendência da sociedade a impor suas próprias ideias e práticas àqueles que discordam delas”.

Essa clássica defesa da liberdade de expressão, que o juiz da Suprema Corte Oliver Wendell Holmes, mais tarde, definiu como “liberdade do pensamento que detestamos”, está sob pressão nos EUA – e pela esquerda. Já vimos isto antes. Há 50 anos, estudantes também impediram que oradores cujas teses considerav­am ofensivas se expressass­em.

Em 1974, William Shockley, cientista vencedor do prêmio Nobel que, sob muitos aspectos, foi o pai da revolução da computação, foi convidado pelos alunos da Universida­de Yale para defender sua tese abominável de que os negros eram uma raça geneticame­nte inferior que deveriam, voluntaria­mente, ser esteriliza­dos. Do debate participar­ia também o líder negro Roy Innis, do Congresso de Igualdade Racial. Houve um tumulto no câmpus e o evento foi cancelado. Um debate posterior com outro oponente foi interrompi­do.

A diferença é que, na época, Yale reconheceu ter cometido um erro ao não garantir que Shockley fizesse sua palestra. E encomendou um estudo sobre liberdade de expressão que ainda é uma declaração transcende­ntal sobre o dever das universida­des de encorajare­m o debate e a dissensão.

O estudo afirma peremptori­amente que uma universida­de “não pode considerar como valor primário e predominan­te a fomentação da amizade, da solidaried­ade, harmonia, civilidade ou respeito mútuo. Jamais deve permitir que esses valores dominem o seu objetivo fundamenta­l. Valorizamo­s a liberdade de expressão precisamen­te porque ela oferece um fórum para o novo, o provocativ­o, o perturbado­r e o não ortodoxo.”

E acrescenta: “Apostamos, como a Primeira Emenda, quando defendemos a ideia de que a liberdade de expressão resulta num benefício geral no longo prazo, por mais desagradáv­el que esse resultado pareça no momento”. E é nessa aposta de longo prazo na liberdade que se apoia a democracia liberal.

A clássica defesa da liberdade de expressão está sob pressão nos Estados Unidos – e pela esquerda

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