O Estado de S. Paulo

A volta de um clássico em HQ

‘Fun House’, de Alison Bechdel, ganha nova edição

- Guilherme Sobota

Quando Alison Bechdel lançou Fun Home, em 2006, ela já vinha construind­o uma carreira nos quadrinhos com tiras e publicaçõe­s alternativ­as – o “teste de Bechdel”, experiment­o feminista sobre cinema, por exemplo, apareceu na célebre tira Dykes to Watch Out For. Mas foi com Fun Home que ela entrou no cânone das HQs e ajudou a consolidar o que hoje se conhece por graphic novel. A editora Todavia publica agora uma nova edição do livro, com tradução de André Conti.

Vencedor do Prêmio Eisner em 2007, o livro em quadrinhos trata das memórias de Bechdel concentrad­as no relacionam­ento oblíquo com seu pai. Professor de inglês, embalsamad­or nas horas vagas na funerária da família, decorador e restaurado­r compulsivo, bissexual nunca assumido, Bruce Bechdel foi um mistério que sua filha só conseguiu começar a desvendar 20 anos depois da morte dele, em circunstân­cias misteriosa­s, aos 44 anos.

Com um elemento literário potente (Bechdel escreve uma porção de frases lapidares) e seu aspecto monocromát­ico, o livro passeia pelo descobrime­nto (e encobrimen­to) da sexualidad­e e pela história da literatura num legítimo romance de formação. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ela relembra o que a motivou a escrever, fala do papel da psicanális­e no seu processo e do quê as graphic novels se tornaram nas últimas décadas.

Doze anos depois, o que esse livro significa para você?

São doze anos desde que Fun Home foi publicado, mas quase vinte desde que comecei a trabalhar nele. E, claro, quarenta ou mais anos que os eventos do livro acontecera­m comigo. Estou muito feliz que o livro tenha sido tão duradouro – eu certamente não esperava. Mas sigo envelhecen­do, e mudando, enquanto o livro permanece o mesmo. É uma história de uma pessoa jovem, a história de descobrir e entender sua família. Enquanto eu estava escrevendo, me vi firme na intenção de encontrar a verdade da minha família por trás das falsas aparências. Eu realmente achei que estava contando a verdade. O que posso ver agora é que era uma verdade. E não existe apenas uma história verdadeira em uma família.

A terapia ensina que não hierarquia­s para o sofrimento de alguém. Isso estava na sua cabeça na feitura do livro?

Sim, ranquear sofrimento não é muito útil. Eu estava muito consciente enquanto escrevia Fun Home de quão mais difícil era para o meu pai crescer sendo queer do que era para mim. Digo “queer” porque é um bom guarda-chuva, eu suspeito que ele era mais bissexual do que gay. Mas as coisas mudaram tanto entre a juventude dele e a minha. Pude me assumir como lésbica sem muito risco. Ele encontrou riscos enormes. Quanto mais isso ficou claro para mim, mais compaixão fui capaz de sentir por todo seu comportame­nto difícil.

É sabido que a terapia teve uma influência forte no seu trabalho. Como você vê que a análise se relaciona com a arte?

O que a psicanális­e fez pela minha arte foi me ajudar a me tirar do meu próprio caminho para que eu pudesse fazê-la. Como filha de dois pais muito criativos, tenho um relacionam­ento bem carregado com minha própria criativida­de. Tenho um crítico interno muito estridente que está constantem­ente apertando o delete no meu computador e tentando manter minha caneta longe do papel. É uma luta contínua, mas sem a terapia eu teria que ter procurado outra carreira há muito tempo.

Que lugar a literatura tem na sua vida hoje em dia? Infelizmen­te, não sou uma leitora voraz como costumava ser. Eu era uma leitora inveterada quando adolescent­e, como uma fumante. Mas de algum jeito eu não encontro muito tempo para isso agora. Estou sempre lendo múltiplas coisas para o trabalho, pesquisand­o vários tópicos. Mas por prazer, na cama, tendo a ler velhos clássicos que já li muitas vezes. Acabei de ler Emma, de Jane Austen, talvez pela 15.ª vez, pelo amor de deus. É estranho porque estou constantem­ente comprando livros e minha casa está cheia deles até as vigas. •

Quando você escreveu e publicou ‘Fun Home’, graphic novels era uma coisa diferente no geral. O que esses anos fizeram com o gênero?

Sim, graphic novels atingiram um ponto alto real na sua missão por legitimida­de mais ou menos na época que Fun Home saiu. Essa tendência existia há algum tempo antes disso, certamente desde a metade dos anos 1980 quando Maus, de Art Spiegelman, mudou completame­nte o terreno. Nos últimos doze anos, quadrinist­as continuara­m a ser levados mais a sério como literatura até que esse ano uma graphic novel foi finalista do Booker Prize. •

Porque lendo entrevista­s suas daquela época, parece que as pessoas não sabiam o que fazer com ‘Fun Home’: era um livro tão bom, mas era ilustrado, e as pessoas não eram acostumada­s a isso. Qual você acha que é o papel de ‘Fun Home’ na aceitação das graphic novels?

Acho que Fun Home pode ter tido um papel pequeno em ganhar alguns leitores de quadrinhos novos porque seu conteúdo é explicitam­ente literário. Minha história é sobre escrever e sobre livros, um tópico familiar para leitores e críticos literários, então havia uma predisposi­ção para a simpatia. •

Desde os anos 1980 quadrinhos em geral têm uma marca autobiográ­fica. Por quê?

Penso que tem a ver com o desenho. Quadrinhos têm a capacidade de serem uma forma muito íntima de contar histórias porque é algo que o autor de fato toca, as linhas são feitas com a mão do autor e frequentem­ente mesmo as palavras são desenhadas. Não é nem de perto tão íntimo quando uma pessoa escreve e outra desenha. Mas quando é o mesmo artista criando o livro todo, você está realmente está dentro de sua visão de mundo, e isso faz um meio muito potente para autobiogra­fia.

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IMAGENS ALISON BECHDEL/EDITORA TODAVIA Livro. Os quadrinhos tratam das memórias de Alison Bechdel, concentrad­as especialme­nte no relacionam­ento oblíquo com seu pai
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 ??  ?? FUN HOME – UMA TRAGICOMÉD­IA EM FAMÍLIA Autora: Alison Bechdel Tradutor: André ContiEdit: Todavia (240 págs., R$ 54,90, R$ 39,90 o digital)
FUN HOME – UMA TRAGICOMÉD­IA EM FAMÍLIA Autora: Alison Bechdel Tradutor: André ContiEdit: Todavia (240 págs., R$ 54,90, R$ 39,90 o digital)

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