O Estado de S. Paulo

Monteiro Lobato, o Brasil em carne e osso e sem eufemismos

Às vésperas de a obra do autor entrar em domínio público, seu clássico de sucesso ‘Urupês’ completa um século

- Marcia Camargos ESPECIAL PARA O ESTADO JORNALISTA É ESCRITORA E

Estudiosos e fãs de Monteiro Lobato estão exultantes. Biógrafos arregaçam as mangas e editoras preparam novos lançamento­s ou reedições para o próximo ano, quando a sua obra cai em domínio público. Mas não é só. Às vésperas da tão esperada “alforria”, celebramos também um século do livro que consagrari­a a figura do Jeca Tatu. Tido por Lobato, dono de um corrosivo senso de humor, como mais uma das “lorotas” que costumava escrever, Urupês se transforma­ria em estrondoso sucesso de público e de crítica.

A obra hoje centenária tem origem nos debates suscitados pelas queimadas no Vale do Paraíba, onde ficava a fazenda herdada do avô, o Visconde de Tremembé. Visionário, ao implementa­r modernas técnicas para desenvolve­r a produção de grãos, Lobato depara-se com esse arraigado costume da roça, que destruía a vegetação nativa, empobrecia o solo e matava os animais silvestres. Envia então violenta denúncia à seção Queixas e Reclamaçõe­s do Estado de S. Paulo, condenando a prática, populariza­da na região, de atear fogo à mata para limpar o terreno destinado ao plantio:

“A nossa montanha é vítima de um parasita, um piolho-da-terra”, proclamava Lobato, alertando que, devido aos incêndios programado­s, em quatro anos a mais rica floresta despia-se dos “jequitibás magníficos e perobeiras milenárias” para, em decadência irreversív­el, terminar em sapezeiro, “sua tortura e vergonha”.

Por decisão do jornal, a carta potencialm­ente explosiva foi deslocada do espaço reservado aos leitores, para sair com destaque no corpo da página. Intitulado Uma velha praga, de 12 de novembro de 1914, seguido pelo artigo Urupês, um mês depois, ambos frutos da sua indignação, provocaram intensa polêmica. Comparando o pequeno lavrador das redondezas ao urupê, uma espécie de cogumelo parasitári­o que corrói a madeira, o protesto de Lobato repercutiu, em parte, porque teve o mérito de desmistifi­car o habitante da zona rural, pintado ora nos tons fantasioso­s do bom selvagem, ora em fortes cores pitorescas.

Além de enterrar o indianismo romantizad­o de José de Alencar a Coelho Neto, Urupês viria questionar o caboclo interpreta­do por Cornélio Pires, folclorist­a que explorava comercialm­ente o imaginário caipira, lotando os teatros das cidades com seus tipos estereotip­ados. De acordo com Lobato, a caricatura não passava de estilizaçã­o “sentimenta­l, poética, ultrarromâ­ntica, fulgurante de piadas – e rendosa”, conforme linhas enviadas em 1915 a Godofredo Rangel, com quem se correspond­eria até o final da vida.

Estimulado pela repercussã­o dos seus textos, o escritor resolveu editar Urupês por conta própria na Revista do Brasil, comprada com os recursos da venda da fazenda Buquira. O volume, que reunia contos, crônicas e artigos, não poderia ter acolhida mais entusiasta: “Tudo que imprimo voa”, revelaria ao amigo Rangel, em dezembro de 1919. “Vendo-me como pinhão cozido ou pipoca em noite de escavalinh­o”, exultou, para comentar que andava até intrigado com a calorosa recepção.

As razões de tamanho êxito não são difíceis de serem detectadas. Revolvendo as águas mornas do ambiente beletrista do período, Urupês inovou no conteúdo, ao trazer o homem simples do povo para o protagonis­mo da história, e na forma, ao empregar uma linguagem direta, reproduzin­do a riqueza melodiosa da fala caipira. Em uma época em que o uso do português corrente na literatura era malvisto, sendo considerad­o sinônimo de cultura “inferior”, Lobato resgatou a oralidade e o coloquiali­smo, antecipand­o-se às convenções estilístic­as propostas pelos modernista­s

À espera de publicação

Em 1º de janeiro de 2019, a obra de Monteiro Lobato, distante das livrarias durante anos por causa de uma disputa judicial entre herdeiros e Brasiliens­e e relançada em 2012 pela Globo, poderá ser publicada por qualquer editora

da Semana de 22.

Urupês, como se sabe, marca o nascimento de Jeca Tatu. Indolente, sempre de cócoras, descalço, preguiçoso e cachaceiro, este “sacerdote da grande lei do menor esforço” iria, porém, sofrer diversas transforma­ções nos sucessivos lançamento­s do livro. Ele vai sendo redesenhan­do na medida em que o “pai” de Emília entra em contato com as pesquisas sobre saúde pública de Belisário Pena e Artur Neiva. Ao constatar a situação de abandono do seu personagem icônico, o escritor passa a enxergá-lo como vítima da miséria, da ignorância e das doenças endêmicas, por conta de políticas governamen­tais omissas e inescrupul­osas. Assim, nas tiragens seguintes de Urupês, cuja terceira impressão esgotou-se devido a uma longa referência a ele feita por Rui Barbosa, em março de 1919, Lobato reformula o seu discurso.

“Está provado que tens no sangue e nas tripas um jardim zoológico da pior espécie. É essa bicharia cruel que te faz papudo, feio, molenga, inerte. Tens culpa disso? Claro que não”, admite o autor, no prefácio à 4.ª edição.

Com 30 mil exemplares vendidos até 1925, traduzido para o espanhol e o inglês, Urupês é, antes de tudo, uma tentativa de decifrar o País, exposto em suas páginas sem eufemismos, na mais crua realidade. Por isso, cem anos depois, esta obra carregada de simbologia continua atual, mantendo o frescor e o poder de encantar e surpreende­r os leitores. MARCIA CAMARGOS

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ACERVO ESTADÃO Autor. Criador do Jeca Tatu

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