O Estado de S. Paulo

Arthur Miller e sua tragédia atemporal

Montagem de ‘Panorama Visto da Ponte’ conta com boas atuações de Rodrigo Lombardi e Sérgio Mamberti

- Maria Eugênia de Menezes ESPECIAL PARA O ESTADO

DIRETOR RETIRA A TRAMA DO QUE SERIA A SUA MOLDURA MAIS NATURALIST­A Um Panorama Visto da Ponte pode ser classifica­da como uma tragédia grega. O rótulo não tem nada a ver com a época nem com o lugar onde foi escrita: os Estados Unidos, na década de 1950. Mas se relaciona intimament­e à forma escolhida pelo escritor Arthur Miller para dar forma a essa história. Apresentad­a pela primeira vez em um único ato, a peça foi um fracasso em sua estreia. O autor, então, encontrou nos clássicos da Grécia uma maneira de salvar a obra: expandindo a duração da obra e dando mais substância à inexorável perdição do protagonis­ta, um estivador (Rodrigo Lombardi) atormentad­o por uma paixão proibida.

Na versão atualmente em cartaz em São Paulo, o diretor Zé Henrique de Paula parece tomar essa visão trágica do texto como guia, retirando a trama do que seria a sua moldura mais naturalist­a – ou seja, afastando-se daquele teatro que busca reproduzir a realidade. Há, por exemplo, quebras na ação em que os intérprete­s adquirem gestos mais artificiai­s, quase coreografa­dos. O cenário, feito com contêinere­s, até evoca um ambiente portuário, mas poderia ser simplesmen­te uma praça localizada em qualquer tempo ou lugar. Porém, mesmo que a direção tente escapar do que seria uma reprodução do real, parte do elenco aparenteme­nte não consegue dar o salto proposto.

Em boa parcela das cenas, os conflitos são carregados para o território do drama tradiciona­l, só que sem o amparo ou o substrato que uma interpreta­ção desse tipo pediria. Os atores mais jovens parecem especialme­nte suscetívei­s a esse caminho. Ao tentar imitar o pretenso comportame­nto de uma jovem de 17 anos, a atriz Gabriella Potye não matiza a personagem Catherine com as dubiedades que uma construção realista lhe pediria. Infantiliz­ada, ela também não torna crível o relacionam­ento com Rodolfo, uma representa­ção de Bernardo Bibancos igualmente desprovida de sutilezas e profundida­de.

A interpreta­ção de Sérgio Mamberti – como o advogado que já sabe o desfecho terrível da história e relata como ela aconteceu – é o ponto alto dessa montagem brasileira. O ator assume ainda a função que um corifeu teria no teatro grego, comunicand­o-se com a plateia e comentando as ações. Assim, é capaz de nos fazer acompanhar o percurso do protagonis­ta Eddie Carbone com um pouco mais de compaixão (e até certo fascínio) por suas fraquezas, tão humanas.

A história se passa nas docas, próximas à ponte do Brooklyn, em um contexto de pobreza onde imigrantes brigavam para conquistar seu lugar no sonho americano. É inevitável, portanto, que a peça reflita conflitos próprios à época em que foi escrita. Alguns analistas chegam a enxergar o título como uma parábola dos anos de macarthism­o, quando a paranoia da guerra fria e a caçada aos comunistas levou artistas a serem acusados de traição. Mas, ainda que toque em todos esses temas – a imigração, a pobreza, a delação –, Panorama Visto da Ponte não se reduz a eles. Sobrevive bem ao passar dos anos justamente por seus componente­s atemporais: a trajetória de um homem cego a tal ponto por suas paixões que é capaz de trair todas as suas crenças.

Por quase 18 anos, Eddie tentou seguir o caminho correto. Trabalhou duro descarrega­ndo navios, manteve-se fiel à família e ajudou a mulher, Beatrice, a criar a sobrinha órfã, Catherine. Era visto como bom companheir­o por seus pares e não hesitou em abrir as portas da própria casa para receber dois parentes distantes que vinham da Itália fugindo da fome. Tudo se dissolve no ar, contudo, quando a adolescent­e que ele criou como filha e o imigrante recém-chegado começam um romance. Rodrigo Lombardi maneja com destreza as transições bruscas do protagonis­ta – tomado por uma obsessão pela menina, cego pelos próprios desejos, atormentad­o por breves lampejos de lucidez.

Em duas ocasiões, o protagonis­ta procura o advogado em busca de uma solução legal para o impasse. Se a lei lhe oferecesse uma saída, seria possível refrear os instintos. Mas não há lei que o ampare, não há meios de escapar ao seu terrível destino. Em O Nascimento da Tragédia, Nietzsche propõe que aos autores da época não interessav­a usar as peças como meras formas de educar a plateia, incutindo-lhe costumes, mas também como meio de levar o espectador a confrontar-se com dilemas éticos e morais de seu tempo. Cabia ao dramaturgo fazer essa aproximaçã­o entre um novo homem e um novo código jurídico. Em Panorama Visto da Ponte, é como se Arthur Miller atualizass­e essa missão dos poetas gregos, trazendo-a para o seu tempo, para o nosso.

UM PANORAMA VISTO DA PONTE

Teatro Raul Cortez. R. Dr. Plínio Barreto, 285, tel. 3254-1631. 6ª, 21h30, sáb., 21h, dom., 18h. R$ 80. Até 25/11

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ALEX SILVA/ESTADÃO O estivador e o advogado. Lombardi e Mamberti

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