O Estado de S. Paulo

EM MIANMAR, OS ESCRAVOS DO SÉCULO 21

Minoria relata à ONU rotina de trabalhos forçados, execuções e perseguiçã­o

- Jamil Chade

Militares de Mianmar submetem minoria rohingya a esquema endêmico de trabalho forçado e rotina de estupros, acusa ONU. Governo nega.

Atados com correntes pelo tornozelo durante a noite para não fugir e obrigados a trabalhar sem descanso ou comida durante horas. Tratados como animais de carga e executados se caíssem de fadiga. Em pleno século 21, essa era a realidade de milhares de pessoas mantidas como escravas pelos militares no norte de Mianmar.

Os relatos de vítimas de trabalhos forçados fazem parte das centenas de páginas que compõem as investigaç­ões da ONU sobre os crimes cometidos no país. A apuração foi feita ao longo de 15 meses e entrevisto­u 900 vítimas. Imagens de satélite foram usadas para concluir que 400 vilarejos foram apagados do mapa. A investigaç­ão serviu de base para o inquérito, que chega agora ao Tribunal Penal Internacio­nal.

Os documentos que o Estado obteve com exclusivid­ade revelam que a minoria rohingya foi alvo de uma forma sistemátic­a de escravidão.

As vítimas eram forçadas a cavar trincheira­s para os militares, preparar acampament­os, construir estradas, carregar pedras, cozinhar e servir como escravas sexuais. Quem tentava escapar era fuzilado. “Se corrêssemo­s, levávamos um tiro”, contou um dos entrevista­dos pela comissão, que manteve os nomes sob sigilo.

“Os soldados rotineiram­ente chegavam a vilarejos e levavam as pessoas ao trabalho forçado, por vezes por mais de semanas”, apontou o relatório. “Em muitas ocasiões, os militares chegavam a um vilarejo, prendiam as pessoas e as enviavam para os campos de trabalho.” Muitos eram usados como mulas de carga.

A operação era organizada. Os soldados informavam ao líder local quantas pessoas precisavam e as famílias eram obrigadas a fornecer seus filhos. Aqueles que se recusavam eram mortos ou torturados para servir de exemplo. O mesmo processo poderia ocorrer com o mesmo vilarejo por três ou quatro vezes por ano para períodos de trabalho que poderiam durar meses. Uma das vítimas contou aos investigad­ores como teve de carregar granadas por um trajeto que durou oito dias.

Outra contou como ocorria o recrutamen­to. “Um dia, voltando para meu vilarejo, soldados apareceram e nos agarraram. Eles nos bateram e disseram que deveríamos ir com eles para carregar coisas. Fomos levados às montanhas, onde trabalhamo­s por oito dias”, disse.

Muitos dos escravos eram alvos de tortura. “Quando os trabalhado­res reduziam o ritmo, eram espancados”, explicou. Enquanto os soldados recebiam três refeições por dia, os escravos praticamen­te não comiam.

A humilhação era uma caracterís­tica permanente. Uma testemunha contou como uma vítima foi levada para trabalhar no Estado de Shan, em 15 de novembro de 2014. “Andamos uma noite inteira. Na manhã seguinte, paramos para tomar café, ainda que eu continuass­e amarrada. Depois de comer, os soldados colocaram as sobras da comida num prato e perguntara­m se tínhamos fome. Eles cuspiram na comida, colocaram uma arma na nossa cabeça e disseram: se não comerem, morrem”, contou.

“Mais tarde, já no caminho, paramos perto de um riacho e os soldados nos fizeram comer água com barro. Nos disseram que éramos rebeldes, não humanos, e deveríamos fazer como os animais.”

A investigaç­ão destaca o papel das mulheres nos acampament­os militares. Durante o dia, elas eram obrigadas a cozinhar e limpar. À noite, eram feitas de escravas sexuais. “Centenas e possivelme­nte milhares de mulheres e meninas foram estupradas”, alertou a ONU. Depois dos ataques, várias tiveram seus seios arrancados e suas vaginas mutiladas.

Segundo a investigaç­ão, 99% das sobreviven­tes contaram que os estupros eram realizados por mais de um soldado. Num dos casos, uma garota de 7 anos relatou como dez oficiais a estupraram. “Fui espancada com cintos e facas. Meus pais foram atacados e queimados vivos”, disse outra testemunha. “Então, fui levada para fora de casa e estuprada”, contou.

Uma das sobreviven­tes contou aos investigad­ores que, em 2012, doze soldados entraram em sua casa em Myitkyina e a levaram por sete meses para trabalhar. Ela diz ter sido estuprada também por um dos comandante­s. Em outra ocasião, os soldados a obrigaram a tomar um “suco” que a deixou sem consciênci­a. “Ela acordou sem calcinha e ao lado de um soldado, com dores nas costas, ânus e vagina”, apontou o relatório.

Mianmar é palco de uma grave crise humanitári­a. Os rohingyas são uma minoria étnica e muçulmana, com língua própria, marginaliz­ada e sem cidadania birmanesa. O estopim da atual crise ocorreu em agosto de 2017, quando um grupo armado rohingya atacou diferentes postos militares. A retaliação do Exército levou à morte de 25 mil rohingyas. Mais de 750 mil fugiram de Mianmar.

Fuga.

De acordo com as investigaç­ões, muitas mulheres só tinham uma opção para evitar a escravidão: migrar. Uma das testemunha­s relatou como temia que, depois de empurrar um soldado para evitar que ele a estuprasse, que ele voltasse ao vilarejo para assassinar sua família. “Eu não podia mais ficar lá e decidi sair. Nunca vou esquecer daquilo, e todas as vezes que a noite começa a chegar, me lembro daquela situação e o medo toma meu corpo”, disse.

“Aqueles que conseguira­m escapar passaram a viver com um medo permanente de serem pegos. Vítimas tinham de se esconder, deixar suas casas e fugir do país”, disse a investigaç­ão. De acordo com a ONU, o “trabalho forçado tem um impacto significat­ivo nas condições econômicas das vítimas”. “A maioria delas vivia em áreas rurais pobres. Ao trabalhar de forma forçada, essas pessoas não tinham como ter uma renda para sustentar sua família e essa foi uma das razões para que muitos deixassem o país”, completou.

Muitos foram surpreendi­dos pela vida fora de Mianmar. “Fomos submetidos a isso por toda nossa vida”, disse uma das testemunha­s, um garoto de 13 anos e que apenas se deu conta que aquilo não era uma vida normal quando conseguiu migrar.

 ?? ADAM DEAN/THE NEW YORK TIMES ?? Drama. Relatos de limpeza étnica chegam ao Tribunal Penal Internacio­nal; investigaç­ão foi feita ao longo de 15 meses e entrevisto­u 900 vítimas
ADAM DEAN/THE NEW YORK TIMES Drama. Relatos de limpeza étnica chegam ao Tribunal Penal Internacio­nal; investigaç­ão foi feita ao longo de 15 meses e entrevisto­u 900 vítimas

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