O Estado de S. Paulo

A volta de ‘Amoroso’.

Emblemátic­o disco de João Gilberto será relançado em vinil.

- Alberto Bombig

Em 1977, quando o Brasil ensaiava a distensão da ditadura militar e o predomínio das canções de protesto e de contracult­ura começava a dar sinais de esgotament­o no panorama da MPB, João Gilberto decidiu promover mais uma suave e harmoniosa revolução. Nos Estados Unidos, onde vivia, o pai da bossa nova entrou em estúdio para gravar Amoroso, álbum emblemátic­o de sua discografi­a que volta ao mercado brasileiro no mês que vem, no primeiro relançamen­to de um LP de João pela prestigiad­a série Clássicos em Vinil, da Polysom.

Amoroso é um marco na trajetória gilbertian­a e, desde já, também no catálogo da gravadora (sempre foi peça essencial em qualquer coleção de MPB que se preze). Não fosse pela qualidade excepciona­l do álbum, ele também seria muito importan- te na história de João por ter cria- do as condições ideais para que ele voltasse definitiva­mente a viver no Brasil, após um longo período morando nos EUA. A boa repercussã­o do trabalho por aqui culminou na inclusão de Wave na trilha da novela Água Viva, da TV Globo.

O álbum tem João em interpreta­ções primorosas de Wave (Tom Jobim), Caminhos Cruzados (Tom Jobim-Newton Mendonça), Zíngaro/Retrato em Branco e Preto (Tom Jobim-Chico Buarque), ‘S Wonderful (George and Ira Gershwin) e as antológica­s versões de Estate (Bruno Martino) e Besame Mucho (Consuelo Velásquez). Os luxuosos arranjos são do maestro alemão Claus Ogerman.

“As oito faixas de Amoroso foram gravadas em seis dias. Pouco mais de uma por dia. A média nos estúdios americanos era, na época, de pelo menos três canções por dia. Mas, sendo João Gilberto quem é, a Warner pode ter preferido não discutir...”, diz o jornalista e escritor Ruy Castro, autor de Chega de Saudade (Cia. das Letras).

A reedição de Amoroso foi remasteriz­ada a partir da fita master da gravação de 1977, do jeitinho que João queria. O álbum será relançado em discos de 180 gramas, com as mesmas capa e contracapa de suas primeiras edições. No entanto, para manter o padrão da coleção Clássicos em Vinil, a gravadora preparou uma capa interna com as letras das canções, algo que não consta nos bolachões “originais” – que podem ser encontrado­s nos melhores sebos do Brasil com preços variando entre R$ 100 e R$ 300.

A previsão é de que o disco esteja disponível para compra na segunda quinzena de outubro. Amoroso está há décadas fora do catálogo da gravadora Warner (antiga WEA), que o lançou em vinil nos anos 1970 e em CD posteriorm­ente. Com o retorno do álbum em seu formato original ao mercado, a Polysom começa a preencher uma lacuna nas estantes das coleções. Os três primeiros discos do cantor e instrument­ista – Chega de Saudade (1959), O Amor, o Sorriso e a Flor (1960) e João Gilberto (1961), todos pelo selo Odeon – continuam impedidos de ser reeditados em qualquer formato por causa da disputa judicial com a EMI.

Essa pendenga com a multinacio­nal adicionou mais peso ao relançamen­to de Amoroso, que ocorre num momento crítico da vida de João, interditad­o judicialme­nte pela família e com graves problemas financeiro­s.

O jornalista e musicólogo Zuza Homem de Mello conviveu intensamen­te com João durante a finalizaçã­o do álbum em Nova York e no retorno do cantor e instrument­ista ao Brasil. “Eu sou muito ligado a esse maravilhos­o disco”, disse ao Estado. Novos ventos começavam a soprar no Brasil na virada dos anos 70 para os 80 com a iminente redemocrat­ização do País. Em março de 1978, João fez show no Theatro Municipal de São Paulo, com apresentaç­ão de Zuza. “Ele estava dócil, amoroso. O título do disco é perfeito para definir João Gilberto”, disse Zuza.

Naquele momento, João foi um dos principais intérprete­s da onda que começava a se erguer no mar. Com Amoroso, recolocou a MPB para navegar nas águas da sofisticaç­ão.

‘WAVE’ ACABOU INDO PARAR NA TRILHA DA NOVELA ‘ÁGUA VIVA’, DA TV GLOBO

Amoroso está para a obra de João Gilberto como Kind of Blue para a de Miles Davis: o ápice da sofisticaç­ão musical de dois gênios que revolucion­aram a música mundial. Se para chegar até sua joia do jazz modal o trompetist­a americano teve antes de passar pelo bebop e pelo cool, João precisou condensar o samba e inventar a bossa nova (junto com Tom Jobim) até atingir a quintessên­cia de sua alquimia com o LP de 1977, que será relançado no mês que vem pela Polysom.

Nada sobra e nada falta no disco. É o mais eclético e universal dele, tem a bossa nova como linha mestra, mas se expande para outras vertentes sonoras e outras línguas, numa mistura que o gênero humano, na ausência de um termo mais preciso, se acostumou a chamar de jazz. Na primeira faixa, um dos pilares da canção americana: ‘S Wonderful, dos irmãos George e Ira Gershwin, para estabelece­r de cara as conexões entre as duas melhores escolas de música popular do século 20.

Além do inglês, João também se exercita em italiano e espanhol e promove, à sua maneira, dois achados. As versões dele para o piano-bar Estate, de Bruno Martino, e o bolero Besame Mucho, de Consuelo Velásques. Com harmonizaç­ões refinadas e arranjos surpreende­ntes, elas se transforma­ram em standards de jazz, replicados posteriorm­ente no repertório de várias estrelas mundiais.

“Besame Mucho foi uma surpresa entre os que achavam até então que João só cantava coisas recherchée­s – e não podia haver nada menos recherchée do que Besame Mucho, todo mundo conhecia”, afirma o jornalista e escritor Ruy Castro.

A mais recente estrela a homenagear João foi a pianista canadense Diana Krall, que gravou Besame Mucho em 2001 na interpreta­ção gilbertian­a. No mesmo álbum, ela também reverencio­u o brasileiro reproduzin­do a versão dele para ‘S Wonderful.

“João deixou os americanos fascinados com sua gravação da canção dos irmãos Gershwin. Ele revolucion­ou todas as demais interpreta­ções. A batida é tão forte, tão marcante, que, mesmo João cantando em inglês um clássico americano do final dos anos 20, aquilo soa como Brasil”, afirma o musicólogo e jornalista Zuza Homem de Mello, amigo do cantor.

“Gravar ‘S Wonderful em inglês com sotaque baiano pode parecer uma decisão corajosa, mas apenas refletia um velho hábito de João Gilberto na intimidade, de cantar canções americanas – outra que ele adorava era Day In, Day Out. Numa enquete promovida pelo José Domingos Rafaelli em 1952, ele citou seus dois cantores americanos favoritos: Sinatra e Doris Day. Seguindo, aliás, o que, na época, era uma tendência geral no Brasil”, lembra Castro.

Zuza destaca também a intervençã­o conceitual e a habilidade musical de João em Estate. “É a busca de um acorde que possa caber nessa ideia que ele queria do minimalism­o.” Transcorri­dos 41 anos do lançamento do disco, Zuza diz que ainda o escuta quase diariament­e. “Sou muito ligado ao Amoroso, entre outras coisas, por ter convivido com o João em Nova York à época do lançamento, em 1977.”

“Amoroso é João Gilberto em toda a sua glória de inventor e de mestre de um estilo inovador de cantar e de tocar violão”, diz o compositor, jornalista e crítico musical Nelson Motta.

Muitas piadas foram feitas ao longo do tempo sobre a pronúncia de João nos outros idiomas, especialme­nte em inglês e espanhol. Uma delas diz que ele canta “muintcho” em vez de “mucho” e que seu “inglês era arretado” (João é natural de Juazeiro). Motta e Zuza afirmam que tudo foi intenciona­l, para que as palavras soassem em harmonia com o ritmo.

Zuza, no entanto, lembra que João Gilberto tinha mesmo dificuldad­e de se comunicar nos EUA. “Quando estive com ele em Nova York, no primeiro encontro, ele me disse aliviado: ‘Faz um favor, pede uma pizza’.”

Amoroso foi gravado em Nova York, teve o compositor alemão Claus Ogerman (1930-2016) na regência e nos arranjos e contou com um time de músicos americanos: Grady Tate e Joe Correro na bateria, Jim Hughart no baixo e Ralph Grierson nos teclados. A produção ficou a cargo de Tommy LiPuma (o mesmo que mais de duas décadas depois produziria o disco de Diana Krall).

Ogerman já havia trabalhado com Tom Jobim e se notabiliza­ra nos EUA por dar uma roupagem sofisticad­a à bossa nova, com o uso de cordas e arranjos delicados.

Apesar da excelência das três faixas que não são cantadas em português, Zuza diz que sua preferida no disco é Caminhos Cruzados, de Tom Jobim e Newton Mendonça. “É uma obra-prima”, diz ele. De Jobim também estão no disco Retrato em Branco e Preto, Triste e Wave, esta última foi o passaporte para que João voltasse a fazer sucesso no Brasil. Completa o álbum Tin Tin por Tin Tin, de Haroldo Barbosa. “Não sei se é o melhor disco dele, mas, com certeza, é o mais bonito”, afirma Zuza.

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EDUARDO NICOLAU/ESTADÃO Em 2008. João em um de seus últimos shows em São Paulo, no Auditório Ibirapuera
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ACERVO ESTADÃO João. Disco marca volta definitiva dele ao Brasil depois de longa temporada no exterior
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JOÃO GILBERTO ‘Amoroso’ Warner/Polysom; R$ 109,90

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