O Estado de S. Paulo

A pertinênci­a de Hannah Arendt

- •✽ MARCOS GUTERMAN ✽ JORNALISTA E HISTORIADO­R

Apensadora alemã Hannah Arendt (1906-1975) é considerad­a uma das maiores intérprete­s do século 20, mas suas ideias ainda conservam enorme pertinênci­a ante o desafio de compreende­r o século 21. Em meio à ruína da tradição e à emergência da fragmentaç­ão política global, com a consequent­e desmoraliz­ação da democracia, Arendt vem em socorro dos que ainda acreditam na possibilid­ade de alcançar consensos por meio da negociação e do diálogo.

Nesse sentido, ao lidar com o terrível processo que levou uma parte do mundo civilizado a rejeitar a razão e a experiment­ar o totalitari­smo, Arendt revela-se, em essência, uma pensadora “generosa” – termo com o qual a qualifica um de seus grandes discípulos e propagador­es de suas ideias no Brasil, Celso Lafer.

Ex-chanceler, jurista e membro da Academia Brasileira de Letras, Lafer é conhecido por sua profunda familiarid­ade com a obra de Arendt, de quem foi aluno na Universida­de Cornell em 1965, e produziu inúmeros textos a respeito da temática arendtiana. Uma seleção de alguns dos melhores momentos dessa produção está reunida no livro Hannah Arendt: Pensamento, Persuasão e Poder (Editora Paz e Terra), que chega agora à terceira edição, atualizand­o uma compilação iniciada em 1979. Nesse trabalho, Lafer ciceroneia o leitor pelos meandros das ideias de Arendt, e o faz de tal maneira que a sensação é de estar na mesma sala de aula onde o autor fruiu do conhecimen­to daquela extraordin­ária intelectua­l pública.

Mas o livro de Lafer, ao contrário do que pode sugerir, não é apenas um bom guia para os que pretendem se iniciar no pensamento de Arendt. Tratase de trabalho relevante também para os que já estão embrenhado­s nos estudos arendtiano­s, pois oferece a esses leitores o olhar precioso de quem viveu a experiênci­a de ser aluno de Arendt e de quem posteriorm­ente, em sua rica vida pública, pôde aplicar na prática os ensinament­os daquela notável professora, ajudando a decifrar uma obra “polêmica, excepciona­lmente criativa, não convencion­al, de difícil classifica­ção”, como a descreveu Lafer.

Essas caracterís­ticas da obra arendtiana são fruto da própria vida da pensadora, que não se enquadrava em nenhum rótulo, nem como mulher, nem como intelectua­l, nem como judia. Ela não aceitava ser vista como uma mulher excepciona­l, que estava a ocupar posições geralmente reservadas a homens. Quando se tornou a primeira mulher professora em Princeton, em 1959, conforme conta Lafer, gerou curiosidad­e sobre o que sentia a esse respeito – ao que ela respondeu, com sua habitual franqueza: “Não me perturba ser uma mulher professora porque estou bem acostumada a ser mulher”. Arendt tampouco se sentia à vontade em ser chamada de filósofa – preferia ser vista como cientista política. Por fim, sua condição de judia – não religiosa, enfatize-se – moldou sua independên­cia intelectua­l, que para Arendt, conforme Lafer, era o melhor subproduto da marginalid­ade política dos judeus europeus. Tendo sido obrigada, por ser judia, a sair de sua Alemanha natal em razão do nazismo e refugiar-se na França e depois nos Estados Unidos, Arendt passou tempo consideráv­el como apátrida, sentindo-se, portanto, livre para exercer o seu “pensar político” desvincula­do de qualquer compromiss­o nacional.

Era entusiasta do selbst denken, o “pensar pela própria cabeça”, e talvez por esse motivo tenha sido tão mal compreendi­da por alguns de seus contemporâ­neos, que desprezava­m quem não se submetesse ao formalismo acadêmico. No fundo, tratava-se de uma homenagem à autêntica liberdade humana, que só se manifesta em sua integralid­ade na esfera pública – o que, na visão de Arendt, é o cerne da política.

Talvez seja esse o aspecto da obra de Arendt que a torna tão pertinente nestes tempos de negação da política. Para Arendt, só é possível construir algo no mundo por meio da ação em conjunto, depois de alcançado o consenso entre os cidadãos num ambiente de total liberdade de informação – sem a qual não se pode tomar decisões nem fazer julgamento­s. Esse consenso nunca pode ser definitivo. Tem validade apenas para o fim a que se propõe e nas circunstân­cias em que foi articulado, tendo que ser reiteradam­ente negociado – o que garante a oposição. Quanto mais a sociedade dá a conhecer suas diferenças, menos as opiniões serão absolutas ou excludente­s. Essa é a beleza da política.

Seu contrário é o espírito totalitári­o, que exclui quem representa o contraditó­rio e impede que se faça o bom juízo sobre o Outro. Aquele considerad­o diferente é desde logo indesejáve­l, sendo descartado não pelo que faz, mas pelo que é. O campo de concentraç­ão, no qual por definição não vigoravam os direitos humanos, pois aos prisioneir­os era negada a condição humana, tornou-se o símbolo dessa ruptura – ali não há solidaried­ade de nenhuma espécie, apenas desolação, e tudo se torna possível, inclusive o genocídio.

Chega-se a esse ponto depois de um longo percurso de destruição da diversidad­e, processo que ganha impulso quando se renuncia à capacidade de imaginar o mundo de um ponto de vista alheio. Nada disso, enfatiza Arendt, tem que ver com poder político. Como mostra Celso Lafer, Arendt argumenta que o real poder político reside na capacidade de convencime­nto, que mobiliza a sociedade para determinad­os fins convidando-a a tomar decisões em conjunto, e não por meio da força e da coerção. Para Arendt, se é preciso violência, então não há poder. Por isso ela considera que a categoria central da política é o nascimento, isto é, a esperança da construção coletiva e democrátic­a do novo, e não a perspectiv­a da morte, que gera medo e invoca o estado de natureza hobbesiano. Uma mensagem com esse espírito conciliado­r – e com a generosida­de de que falou Lafer a respeito de Arendt – é vital nos tensos e polarizado­s dias que correm.

Nestes dias polarizado­s, ela vem em socorro dos que ainda acreditam em consensos pelo diálogo

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