O Estado de S. Paulo

O iliberalis­mo dos EUA

- LOURIVAL SANT’ANNA EMAIL: CARTA@LOURIVALSA­NTANNA.COM LOURIVAL SANT’ANNA ESCREVE AOS DOMINGOS

“Eu não estaria tão preocupado com a ascensão da China se os valores liberais não estivessem tão fragilizad­os nos Estados Unidos sob Donald Trump.” Toshihiro Minohara, especialis­ta japonês em geopolític­a da Universida­de de Kobe, sintetiza assim as implicaçõe­s da emergência da China como potência global e o papel esperado dos EUA. Os poderes hegemônico­s anteriores, a partir do Império Romano, comungavam a mesma matriz de valores, observou Minohara em debate na Japan House, em São Paulo, na quinta-feira. A China representa outros.

Estive duas vezes na China este ano. Lá cresce a noção de que eles estão vencendo o debate. Wang Zhengxu, professor de ciência política da Universida­de Fudan, em Xangai, me disse, em maio: “A noção de que o sistema americano de eleições multiparti­dárias é sinônimo de democracia está ultrapassa­da. A democracia é a habilidade de controlar o governo. Só existe um partido na China, mas ele ouve o povo.”

A ascensão, nos EUA e na Europa, de líderes que hostilizam opositores, imprensa, minorias e imigrantes, oferece a políticos autoritári­os no mundo em desenvolvi­mento uma ilusão de superiorid­ade moral. Eles se sentem vingados pela polarizaçã­o e instabilid­ade produzidas pela democracia, como se confirmass­em sua visão de que exercer a autoridade é esmagar o contraditó­rio e a alternânci­a de poder.

Como líder desse novo “Mundo Pós-Ocidental”, título do novo livro do professor Oliver Stuenkel, da Fundação Getúlio Vargas, que moderou o meu debate com Minohara, a China se descobre dotada de poder brando, em vez de pária internacio­nal.

Desde a 1.ª Guerra, recorda Minohara, formado na Universida­de da Califórnia, os EUA têm servido de anteparo à emergência de potências não liberais. “Se a União Soviética tivesse vencido a Guerra Fria, o mundo seria muito diferente”, exemplific­a.

Entretanto, os EUA têm hoje um presidente não liberal, que capturou o Partido Republican­o, subjugando-o a posições contrárias à sua linha tradiciona­l: livre-comércio; alianças com União Europeia, Canadá, México, Japão e Coreia do Sul; e contenção da Rússia. Minohara reconhece que, por meio da guerra comercial, Trump se contrapõe às pretensões chinesas. Mas, ao desencadea­r disputas comerciais também com os aliados dos EUA, e ao colocar em dúvida os compromiss­os de sua defesa, ele põe em risco a ordem internacio­nal – que a China deseja mudar.

O especialis­ta japonês disse que o Brasil e a Índia, como grandes democracia­s emergentes, deveriam se unir ao Japão e a outros países que têm muito a perder com a ruptura da ordem que sustenta os valores liberais e é por eles sustentada. A duas semanas da eleição, porém, os valores liberais nunca estiveram tão ameaçados no Brasil desde sua redemocrat­ização há três décadas.

Na democracia liberal, o Estado assegura os direitos individuai­s em todas as esferas: econômica, social e moral. Isso não o impede de promover a igualdade de oportunida­des. No Brasil, diante do êxito do governo de Fernando Henrique Cardoso, a esquerda, para se tornar competitiv­a, associou o liberalism­o à insensibil­idade social, ao egoísmo de uma elite.

O liberalism­o, assim como os efeitos das privatizaç­ões e do Plano Real, é o contrário disso. Mas, na falta de uma tradição liberal, e de apetite do PSDB de defender o que conquistar­a, essa distorção ganhou adesão. Como resultado, a resposta eleitoralm­ente competitiv­a à devastação econômica, institucio­nal e moral do populismo do PT não é o liberalism­o, mas o populismo autoritári­o de Jair Bolsonaro, que ameaça a democracia. Se nada mudar nas próximas semanas, a causa dos valores liberais no mundo não poderá contar tão cedo com o Brasil.

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DAVE KAUP/EFE
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