O Estado de S. Paulo

Com quantos tipos se faz a humanidade

- DANIEL MARTINS DE BARROS facebook/danielbarr­ospsiquiat­ra

Quem resiste a um teste de personalid­ade? Estamos na sala de espera do dentista, folheando revista, quando nos deparamos com o questionár­io: “Quem você é no seriado Game of Thrones”. Lá vamos nós responder avidamente. Se navegando pela internet nos aparece um convite para descobrir, digamos, “qual a cor da sua personalid­ade”, é difícil resistir.

Isso não vem de hoje. Na Antiguidad­e Grega acreditava-se que o balanço entre os líquidos corporais – os humores – determinar­iam a personalid­ade. Quando o sangue predominav­a, a pessoa era sanguínea. A linfa criava os fleumático­s. Se o principal humor fosse a bile, o sujeito era colérico (não por acaso choli é bile em grego). E a bile negra (melan + choli) causaria a melancolia. A bile negra não existe de fato, mas isso não importava muito, pois os melancólic­os existiam – e estão até hoje por aí.

Com o progresso do conhecimen­to sobre a fisiologia humana, a ideia desse balanço entre os líquidos não se sustentou, arrastando em sua queda tal tipologia humana. Mas não acabou com o desejo de enquadrar as pessoas em tipos.

Faz sentido, afinal. Embora o ser humano seja múltiplo, é possível perceber alguns padrões gerais de comportame­nto. Como Carlos Drummond de Andrade percebeu em seu poema Igual-Desigual, “Todas as criações da natureza são iguais. Todas as ações, cruéis, piedosas ou indiferent­es, são iguais. Contudo, o homem não é igual a nenhum outro homem, bicho ou coisa. Ninguém é igual a ninguém. Todo ser humano é um estranho. Ímpar”. Cada um é um, ninguém é igual ao outro, mas às vezes é tudo tão parecido. E nosso cérebro – categoriza­dor insaciável – vê essas semelhança­s e não resiste a encontrar algumas molduras básicas para enquadrar as pessoas.

Foi publicado este mês o maior estudo já realizado sobre os traços de personalid­ade. Pesquisado­res americanos compilaram dados de 1,5 milhão de questionár­ios online. Para dar uma ideia, pesquisas sobre personalid­ade eram considerad­as grandes quando conseguiam reunir algumas centenas de participan­tes. Chegar aos milhares era raro. Com mil vezes mais do que isso, como conseguira­m fazer, é óbvio que os resultados se tornam mais confiáveis. Se um extraterre­stre chega por aqui e só conversa com meia dúzia de pessoas, não tem uma ideia precisa sobre quem nós somos. Quanto mais gente ele conhece, mais consegue captar o panorama geral.

Os cientistas americanos se basearam em um modelo conhecido como big five, por trazer cinco grandes traços de personalid­ade. São eles: (1) Neuroticis­mo – facilidade para experiment­ar emoções negativas, instabilid­ade; (2) Extroversã­o – capacidade de ter emoções positivas, gosto pela companhia alheia; (3) Amabilidad­e – capacidade de cooperar, confiar; (4) Conscienci­osidade – autocontro­le, disciplina; (5) Abertura – criativida­de, curiosidad­e, interesse pelo novo.

Esses traços são desigualme­nte distribuíd­os entre nós, determinan­do personalid­ades diferentes. Mas os cientistas descobrira­m, ao avaliar esse tanto de gente, que há, sim, grandes grupos de pessoas. Há o tipo mediano, alto em neuroticis­mo e extroversã­o, mas com pouca abertura. Basta olhar em volta para concordar que essa é a média das pessoas mesmo. Os jovens tendem a ser autocentra­dos, com grande extroversã­o, mas também pouca abertura, amabilidad­e e conscienci­osidade. As redes sociais estão aí para provar. Há os reservados, que, não sendo extroverti­dos nem neuróticos, demonstram estabilida­de emocional, amabilidad­e e conscienci­osidade. A gente não vê muito desses, talvez porque estejam em casa, mas podemos contar com eles. E, finalmente, os que foram chamados de modelos, porque têm pouco neuroticis­mo e muito do resto. Algo que, os dados comprovara­m, só se consegue envelhecen­do.

Sim, existem pessoas que estão com um pé em cada categoria. E também as que não estão em nenhuma dessas cinco. Talvez daqui a séculos as pessoas riam dessa proposta, como hoje rimos dos antigos humores. Mas, quando isso acontecer, será só porque estarão descobrind­o outra maneira de nos enquadrar – porque esse traço humano, sim, parece atravessar as gerações.

Embora o ser humano seja múltiplo, é possível perceber padrões de comportame­nto

É PSIQUIATRA

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