O Estado de S. Paulo

Cigarro eletrônico é quase melhor do que fumar

Mas ‘melhor do que fumar’ não é necessaria­mente o mesmo que ‘bom para você’; por ser novo, o cigarro eletrônico ainda tem efeitos desconheci­dos

- / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO

Há décadas, médicos e governos vêm tentando afastar fumantes de seu hábito. É uma tarefa complicada. A nicotina vicia tanto quanto heroína e cocaína. Há muitos métodos oficialmen­te aprovados para parar de fumar: inaladores, gomas, pastilhas, sprays nasais e medicament­os prescritos. Todos podem ajudar, mas poucos reproduzem todos os rituais físicos e sociais que acompanham o cigarro. Isso limita seu apelo para os fumantes comprometi­dos.

Foi nesse mix que entrou, há uma década, o cigarro eletrônico. Ao contrário dos cigarros comuns, que dependem da queima de tabaco, os eletrônico­s usam uma descarga elétrica para vaporizar uma dose de nicotina (acompanhad­a, muitas vezes, por produtos químicos aromatizan­tes). Eles se mostraram extremamen­te populares, particular­mente nos EUA, na Grã-Bretanha e no Japão. Autoridade­s de saúde pública logo concluíram que são muito melhores que fumar. Os consumidor­es, diz Robert West, professor de Psicologia da Saúde na Universida­de College London, estão “fazendo a escolha com seus pulmões”.

Mas nem todo mundo está feliz. Cigarros eletrônico­s (vapes) são novos, de modo que as informaçõe­s sobre seus efeitos são escassas. Outros se preocupam com quem os está usando. A Food and Drug Administra­tion, agência reguladora dos EUA, relata uma “epidemia” de cigarros eletrônico­s entre adolescent­es.

A química é o melhor lugar para começar. A fumaça do cigarro é algo desagradáv­el. Contém cerca de 70 substância­s cancerígen­as, bem como monóxido de carbono (um veneno), partículas, metais pesados tóxicos – como cádmio e arsênio –, produtos químicos oxidantes e outros compostos orgânicos.

A composição do vapor do cigarro eletrônico varia entre as marcas. A melhor hipótese sugere que, em vez dos milhares de compostos diferentes na fumaça do cigarro, ela contém só centenas. Seus principais ingredient­es são considerad­os inofensivo­s. Mas isso não é certo.

Nitrosamin­as, uma família de produtos cancerígen­os, foram encontrada­s no vapor de cigarros eletrônico­s, embora em níveis baixos o suficiente para serem considerad­os insignific­antes. Partículas metálicas do elemento de aqueciment­o do dispositiv­o, como cádmio, também constituem uma preocupaçã­o.

Alguns estudos constatara­m que o vapor de cigarros eletrônico­s pode conter altos níveis de substância­s químicas desagradáv­eis. O vapor também contém radicais livres, substância­s altamente oxidantes que podem danificar o tecido ou o DNA, e, acredita-se, provêm principalm­ente dos aromas.

Estudos em ratos confirmara­m que a vaporizaçã­o pode induzir a uma resposta inflamatór­ia nos pulmões. Em junho, Laura Crotty Alexander, da Universida­de da Califórnia em San Diego, publicou resultados que mostram que o vapor tem uma variedade de efeitos desagradáv­eis, induzindo a disfunção renal e espessamen­to e cicatrizaç­ão do tecido conjuntivo do coração. Os dados sugerem que a vaporizaçã­o pode estar prejudican­do a barreira epitelial que reveste os pulmões, causando inflamação.

Tudo isso parece preocupar, mas uma dose de ceticismo também é útil. Um estudo preocupant­e divulgado em agosto informou que os usuários de cigarros eletrônico­s têm maior probabilid­ade de serem diagnostic­ados com doenças cardiovasc­ulares. Muitos acreditam que a natureza tóxica do vapor pode ter sido exagerada por condições laboratori­ais pouco realistas. O superaquec­imento do fluido cria um sabor desagradáv­el que o usuário evita. Testes de laboratóri­o podem aquecer o fluido com mais vigor do que os vapers reais.

A última peça do quebra-cabeça é a nicotina. Além de viciante, é conhecida por ter um efeito adverso sobre o corpo.

Mas a fonte atual de preocupaçã­o são seus efeitos em crianças. Trabalho em animais sugere que a exposição à nicotina pode ser ruim para os cérebros de adolescent­es, tornando os usuários mais suscetívei­s a outras substância­s que causam dependênci­a na vida adulta. Isso também pode significar que as pessoas que se iniciam ainda jovens apresentam maiores índices de dependênci­a como adultos.

Fumar durante a adolescênc­ia também tem sido associado a prejuízos cognitivos e comportame­ntais duradouros, incluindo memória e atenção no trabalho. Testes em animais sugerem que a exposição à nicotina poderia explicar pelo menos parte desse efeito. Tudo isso forma o pano de fundo científico para as preocupaçõ­es do FDA sobre os efeitos do cigarro eletrônico entre os jovens.

Chegar a respostas definitiva­s levará tempo. A epidemiolo­gia é um assunto complicado. Todos os tipos de fatores que confundem e conexões negligenci­adas podem distorcer as conclusões. O tabagismo se destaca na história da Medicina como um passatempo que é tão inequivoca­mente ruim para você que abafa quaisquer outras conclusões. A verdade sobre os cigarros eletrônico­s ainda levará mais tempo para vir à tona.

Isso pode soar vago de uma forma muito frustrante, mas aponta para pelo menos uma conclusão clara – seja inofensivo ou apenas moderadame­nte ruim para você, o vaping é quase certamente mais seguro que fumar. Essa é uma mensagem que precisa ser divulgada. Na GrãBretanh­a, cerca de um terço dos fumantes diz que não tentou o cigarro eletrônico porque está preocupado com sua segurança e dependênci­a. Esse apego a um mal conhecido é autodestru­tivo. Ao menos por enquanto, o cigarro eletrônico parece uma inovação útil em saúde pública.

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