O Estado de S. Paulo

O País no espelho

- CLÁUDIO FRISCHTAK

Oincêndio no Museu Nacional sintetizou a falha maciça de Estado que vem caracteriz­ando o País. Primeiro, o mau trato com a coisa pública, uma mistura de descaso, desleixo e incompetên­cia, quando não desonestid­ade. Os desastres caem no esquecimen­to, e não há responsabi­lização ou punição efetiva. Segundo, como se tornou notório, o museu não foi destruído por falta de recursos, mas por sua péssima alocação, com as corporaçõe­s tragando os gastos, sobrando pouco para investimen­to, mesmo o essencial: a segurança e integridad­e dos prédios (muitos dos quais históricos) e mais, de acervos cujo desapareci­mento representa um golpe incomensur­ável para esta e futuras gerações, com a perda da nossa memória. Terceiro, a politizaçã­o dos órgãos de Estado, inclusive a Universida­de. Temos um Estado capturado – os casos extremos foram revelados pela Lava Jato, mas os casos “corriqueir­os”, por não estarem expostos, passam ao largo. Não apenas todas – ou praticamen­te todas – as empresas públicas, agências executivas e reguladora­s, órgãos essencialm­ente técnicos servem de moeda de troca neste presidenci­alismo de cooptação. Também algumas universida­des foram tomadas de assalto, pelo visto, por uma partidariz­ação irresponsá­vel, que sequestrou a autonomia universitá­ria em nome de um democratis­mo que distorce o que há de mais básico num ambiente de ensino e pesquisa: liberdade de pensamento, integridad­e de propósitos.

Padecemos de algo fundamenta­l: a má governança do Estado e de suas instituiçõ­es. Quem é o dono do poder? Não parece ser a sociedade, mas grupos de interesse, corporaçõe­s organizada­s, clientelas e parentelas. No caso do Museu Nacional, a universida­de parece estar voltada para grupos organizado­s politicame­nte de funcionári­os, professore­s e estudantes que percebem a instituiçã­o primordial­mente como arena de luta política no embate por ganhos que pouco ou nada têm a ver com o interesse público. Por uma visão míope e mesquinha, o museu se tornou um apêndice da universida­de, e não uma instituiçã­o dotada de autonomia financeira, decisória e de gestão para servir de forma efetiva seus objetivos. Teve oportunida­de de se tornar algo diferente em meados dos anos 2000, mas a coalização das corporaçõe­s não permitiu – afinal, poder emana do controle sobre recursos, do qual voluntaria­mente poucos abrem mão.

O exemplo do Museu Nacional se multiplica e ramifica-se por todo o aparelho de Estado. O que fazer? O primeiro dilema está posto aos nossos olhos: é possível uma reforma do Estado sem antes ou concomitan­temente uma reforma política? Afinal, o Estado e suas peças constituin­tes se tornaram um instrument­o de escambo, troca de favores, para garantir a governabil­idade e outros objetivos menos nobres. Como desentranh­ar os interesses dos mais mesquinhos aos mais vorazes?

O dilema do País não é fazer ou não as reformas. Elas serão feitas, pois a crise fiscal vai aguçar a revolta latente da sociedade. A crise forçosamen­te irá tirar em algum momento da letargia uma aristocrac­ia encastelad­a no poder e que vive no universo paralelo dos privilégio­s exorbitant­es. O problema é como empreender as reformas: se comendo pela beirada, numa estratégia gradualist­a, evitando uma ruptura e com apoio daquelas frações da aristocrac­ia que enxergam que estamos próximos de uma situação-limite; ou avançar e radicaliza­r com base na ideia de que o País necessita de um “tratamento de choque”, e as reformas só serão empreendid­as se direcionad­as pela raiva e inconformi­smo que hoje movem parte significat­iva da sociedade. Em 1964, um presidente politicame­nte inepto levou o País a empreender as reformas sob o regime militar; em 2018, um presidente de mãos atadas por seus erros e um sistema político apodrecido ameaça jogar o País de volta para o futuro, desta vez sob os signos do populismo e do messianism­o. Quando as reformas forem feitas, teremos talvez passado pelo cataclismo do aguçamento das paixões, crise econômica e paralisia decisória. Esperemos que o País não tenha de viver essa experiênci­a. ECONOMISTA O colunista Celso Ming está em férias.

O dilema do Brasil é como empreender as reformas, se comendo pela beirada ou num ‘tratamento de choque’

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