O País no espelho
Oincêndio no Museu Nacional sintetizou a falha maciça de Estado que vem caracterizando o País. Primeiro, o mau trato com a coisa pública, uma mistura de descaso, desleixo e incompetência, quando não desonestidade. Os desastres caem no esquecimento, e não há responsabilização ou punição efetiva. Segundo, como se tornou notório, o museu não foi destruído por falta de recursos, mas por sua péssima alocação, com as corporações tragando os gastos, sobrando pouco para investimento, mesmo o essencial: a segurança e integridade dos prédios (muitos dos quais históricos) e mais, de acervos cujo desaparecimento representa um golpe incomensurável para esta e futuras gerações, com a perda da nossa memória. Terceiro, a politização dos órgãos de Estado, inclusive a Universidade. Temos um Estado capturado – os casos extremos foram revelados pela Lava Jato, mas os casos “corriqueiros”, por não estarem expostos, passam ao largo. Não apenas todas – ou praticamente todas – as empresas públicas, agências executivas e reguladoras, órgãos essencialmente técnicos servem de moeda de troca neste presidencialismo de cooptação. Também algumas universidades foram tomadas de assalto, pelo visto, por uma partidarização irresponsável, que sequestrou a autonomia universitária em nome de um democratismo que distorce o que há de mais básico num ambiente de ensino e pesquisa: liberdade de pensamento, integridade de propósitos.
Padecemos de algo fundamental: a má governança do Estado e de suas instituições. Quem é o dono do poder? Não parece ser a sociedade, mas grupos de interesse, corporações organizadas, clientelas e parentelas. No caso do Museu Nacional, a universidade parece estar voltada para grupos organizados politicamente de funcionários, professores e estudantes que percebem a instituição primordialmente como arena de luta política no embate por ganhos que pouco ou nada têm a ver com o interesse público. Por uma visão míope e mesquinha, o museu se tornou um apêndice da universidade, e não uma instituição dotada de autonomia financeira, decisória e de gestão para servir de forma efetiva seus objetivos. Teve oportunidade de se tornar algo diferente em meados dos anos 2000, mas a coalização das corporações não permitiu – afinal, poder emana do controle sobre recursos, do qual voluntariamente poucos abrem mão.
O exemplo do Museu Nacional se multiplica e ramifica-se por todo o aparelho de Estado. O que fazer? O primeiro dilema está posto aos nossos olhos: é possível uma reforma do Estado sem antes ou concomitantemente uma reforma política? Afinal, o Estado e suas peças constituintes se tornaram um instrumento de escambo, troca de favores, para garantir a governabilidade e outros objetivos menos nobres. Como desentranhar os interesses dos mais mesquinhos aos mais vorazes?
O dilema do País não é fazer ou não as reformas. Elas serão feitas, pois a crise fiscal vai aguçar a revolta latente da sociedade. A crise forçosamente irá tirar em algum momento da letargia uma aristocracia encastelada no poder e que vive no universo paralelo dos privilégios exorbitantes. O problema é como empreender as reformas: se comendo pela beirada, numa estratégia gradualista, evitando uma ruptura e com apoio daquelas frações da aristocracia que enxergam que estamos próximos de uma situação-limite; ou avançar e radicalizar com base na ideia de que o País necessita de um “tratamento de choque”, e as reformas só serão empreendidas se direcionadas pela raiva e inconformismo que hoje movem parte significativa da sociedade. Em 1964, um presidente politicamente inepto levou o País a empreender as reformas sob o regime militar; em 2018, um presidente de mãos atadas por seus erros e um sistema político apodrecido ameaça jogar o País de volta para o futuro, desta vez sob os signos do populismo e do messianismo. Quando as reformas forem feitas, teremos talvez passado pelo cataclismo do aguçamento das paixões, crise econômica e paralisia decisória. Esperemos que o País não tenha de viver essa experiência. ECONOMISTA O colunista Celso Ming está em férias.
O dilema do Brasil é como empreender as reformas, se comendo pela beirada ou num ‘tratamento de choque’