João colhe o que não plantou em seus últimos anos de vida
João Gilberto, aos 87 anos, se tornou, lamentavelmente, um troféu. O homem que deu relevância cultural ao Brasil ao fundar a bossa nova é disputado por mulheres, familiares, amigos, pseudoamigos, jornalistas, pseudojornalistas, cineastas, músicos, biógrafos, executivos de banco, empresários e toda sorte de uma gente que coloca na descoberta de seu paradeiro os louros de uma conquista pessoal. Achar João é bom para quem acha, só para quem acha. E poucos estão preocupados com o que ele de fato quer.
João segue pelo Rio de Janeiro em endereço incerto, ora sob os cuidados da ex-namorada moçambicana Maria do Céu no apartamento da Rua Carlos Góis, no Leblon, ora no apartamento de Copacabana que pertencia à Heloísa Faissol, socialite morta em 2017 e irmã de Claudia, que tem uma filha com o cantor. Alguns amigos chegaram a retirá-lo do apartamento da Carlos Góis em uma operação na calada da madrugada para que ele recebesse tratamento médico em uma casa da Gávea. João ficou por lá pouco tempo, antes de decidir voltar ao seu mundo.
Os filhos do cantor, Bebel e João Marcelo, mal falam entre si. A aura beligerante que envolve os assuntos do pai – dinheiro está muitas vezes no centro deles – impede o culto à leveza que João tanto praticou em sua obra durante décadas.
A gravadora EMI gasta milhões com advogados todos os anos para provar que é detentora dos direitos de obras como O Mito, de 1992, com remasterizações das quais João tanto reclama. O Banco Opportunity apareceu em um momento financeiramente delicado do artista e, por R$ 10 milhões, levou os direitos autorais de Chega de Saudade (1959), O Amor, o Sorriso e a Flor (1960) e João Gilberto (1961), os atos decisivos para a criação de um mito.
Há outro exemplo nas salas de cinema. Inspirado no livro do escritor alemão Marc Fischer, morto em 2014, o cineasta francês Georges Gachot filmou Onde Está Você, João Gilberto. Ele, como Fischer, não mede esforços para encontrar o artista pelo Rio, em uma relação que beira a comportamentos obsessivos. Chega a convencer um exempresário de João para que ele entre no apartamento em que vive o músico enquanto o diretor espera o momento certo para agir do lado de fora.
João Gilberto colhe o que não plantou e sua percepção da agressividade que o espreita da porta para fora só o faz negar este mundo ainda mais. O brasileiro que criou uma música para louvar o silêncio vive seus últimos anos com os ouvidos zunindo pelo barulho da disputa pelo legado de sua obra. João não merecia isso.