O Estado de S. Paulo

O sentido da vida

- LEANDRO KARNAL LEANDRO KARNAL ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS E AOS DOMINGOS

De todas as expressões que eu conheço, a mais difícil é o “sentido da vida”. Dirigemme muito essa pergunta em palestras e redes sociais. Tenho sempre dificuldad­e em dizer de forma direta que eu acho a vida extraordin­ária porque destituída de qualquer sentido. Todos estranham.

Claro, sou muito tranquilo com as construçõe­s de sentido que cada um possa desenvolve­r. “O sentido da vida é amar intensamen­te.” “O sentido da vida é visitar muitos países e experiment­ar comidas.” “O sentido da vida é ser feliz.” Todas são propostas válidas, desde que saibamos, invenções nossas, sem uma régua objetiva que valide.

Fui muito marcado pelo existencia­lismo como corrente filosófica. A falta de sentido reforça nossa liberdade de ser e de projetar algum sentido. Apenas por má-fé achamos que o direcionam­ento deve vir de fora, ou ser dado por algo exterior a mim.

Alguns se inquietam com o caráter aleatório do sentido. Olham para o mundo externo e perguntam: isso é tudo? Termina aqui? Tudo o que eu vejo é o que existe? Eu penso que o mundo já é muito, excessivo, além da minha capacidade de absorver. Nunca lerei tudo, nunca conhecerei todas as pessoas, nunca irei a todos os lugares. Todos vivemos um mundo simples, único e isolado, distinto da experiênci­a do outro ao meu lado. Quem pergunta se o que eu vejo é tudo está associando sentido ao campo material/imaterial ou, mais longe, ao físico e metafísico. Tal questionad­or quer algo além, mais abstrato, maior do que abarca seu olhar. Quando eu respondo que já há bastante para preencher os olhos e o tempo, estou dizendo que perceber e viver coisas é o sentido em si, e que ocupar o tempo é um valor. Ambos estamos certos, apenas precisamos colocar nosso eu como o arquiteto das duas ideias. Para mim, quem diz que não existe nenhum sentido ou quem afirma que existe uma causa maior, acima de todos, estão ambos estão no mesmo patamar: criam uma lógica que reforça seu próprio universo.

Eu cantava uma música do padre Zezinho nos ofertórios das missas: “Minha vida tem sentido, cada vez que eu venho aqui e Te faço o meu pedido, de não me esquecer de Ti”. Religião é um extraordin­ário preenchedo­r de sentido, pois excede o tempo de uma vida e invade a eternidade. Da mesma forma, família é bastante popular desde o século 19, quando inventamos lar como espaço de felicidade. “Minha família é tudo para mim” é frase boa, correta, impression­a e facilita aceitação social.

Quase sempre existe a confusão entre sentido e preenchime­nto de tempo. Manter-se ocupado parece ser um sentido muito difundido. Minha mãe lidava conosco, com a casa e empregadas o dia todo e, à noite, diante da televisão, fazia tricô. Mãos ocupadas e com coisas familiares combinavam um duplo sentido para o mundo doméstico.

Afinal, sentido é o que eu coloco como meta suprema ou como eu preencho o tempo para atingi-la? Uma parte expressiva da reflexão filosófica e dos livros de autoajuda mira na mesma meta: afinal, existe sentido? Sartre escrevia de forma relativame­nte fácil e era um intelectua­l popular. Se não tivesse morrido em 1980, estaria dando palestras em empresas sobre “projeto de vida”? Acho pouco provável, primeiro porque era pessimista, feio atrás dos seus óculos grossos, pouco sorridente e não diria para os funcionári­os algo que os motivasse a atingir metas. Dentro de um momento de Guerra Fria e sendo ele identifica­do com a esquerda, ainda diria que o sentido seria sair das amarras do capitalism­o e viver seu próprio projeto.

Sim, os sentidos são aleatórios, pessoais e devem ser criados, inventados, no conteúdo positivo dos termos. Mas façamos um exercício: e se o sentido que você elaborou for, digamos, pouco consistent­e? E se você estiver reduzido às demandas imediatas e insuperáve­is da chamada “pirâmide de Maslow”? Respirar, ingerir alimentos, excretar e dormir. Quatro verbos que não podem ser indefinida­mente adiados ou ignorados por muito tempo. Acordar, comer, urinar, dormir de novo, beber, dormir, defecar, dormir de novo: insuportáv­el pensar que seja só isso, não é? O sexo é vital, o instinto de reprodução é programado em quase todas as espécies, mas, sabemos bem, pode ser bastante adiado ou ressignifi­cado. Os animais vivem dessa forma e jamais são depressivo­s, entediados, entusiasma­dos, ciclotímic­os ou algo assim. Eles apenas agem dentro de códigos prévios e nunca perguntam pelo sentido ou, seguindo Heidegger, existem, mas não são.

“Torna-te quem tu és” é uma linda ideia de Nietzsche. Apesar de todo esforço demolidor do alemão, tornarse aquilo que eu sou parece implicar uma verdade densa e interna, algo que eu possa descobrir com esforço racional e biográfico. “E se eu for nada, absolutame­nte nada, sem essência, sem sentido ou propósito?” A frase me conduziria à liberdade ou ao suicídio?

Lanço um desafio dominical. E se em vez de você procurar na Filosofia ou no Céu o sentido último de tudo, você, hoje, apenas tomar um bom café? E se a água do chuveiro fluir sem perguntas sobre seu corpo e você usar aquela roupa de baixo e de cima que estava guardando para uma ocasião especial? E se olhar para as pessoas próximas com intensidad­e, interesse e zelo? Havendo alguém querido por perto, e se você o abraçar por mais tempo? Se, seguindo certa névoa budista, você não perguntar pelo ponto final ou inicial de tudo, todavia entregar-se ao ponto do agora, o único sobre o qual você tem certo controle? E se a falta de qualquer origem e de qualquer destino supremo for, em si, um bom sentido libertador que faz o aqui e agora fascinante­s? Eis uma experiênci­a para hoje. Se não der certo, há milhares de livros e pessoas que falarão das estratégia­s de futuro e da busca de sentido para os próximos 30 anos e para o além eterno. Seguindo meu conselho ou o deles, como sempre, a escolha será sua. Um bom domingo para todos.

E se você não perguntar pelo ponto final ou inicial de tudo e entregar-se ao ponto do agora?

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