O Estado de S. Paulo

EM BUSCA DAS RAÍZES REAIS DA REPÚBLICA NO BRASIL

Historiado­ra Heloisa Starling investiga, no período colonial brasileiro, como surgiram os germes do ideal republican­o de liberdade e igualdade

- Elias Thomé Saliba

Certas palavras sofrem um processo de inflação e, como no universo monetário, quanto mais as usamos, mais perdem seu valor. A palavra República é uma delas e, para deflacioná-la dos valores corroídos, nada melhor que a densa e pitoresca narrativa histórica realizada por Heloísa Starling, no recémlança­do Ser Republican­o no Brasil Colônia.

“Nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum”, diagnostic­ou Frei Vicente do Salvador em 1627, assinaland­o o momento no qual a palavra – não necessaria­mente a coisa – desembarca­va nestas plagas. Inicialmen­te utilizada na cultura política portuguesa, a palavra servia apenas para designar a gestão administra­tiva exercida pelas câmaras municipais. Foi a partir do final do século 17 que “República” começou a ser associada a “sedição”, que designava claramente um “ajuntament­o de colonos armados e reunidos com a intenção deliberada de perturbar a ordem pública” Mas os significad­os mais autênticos, associados ao campo semântico da justiça, do bem comum, da liberdade e do bom governo – hauridos da antiguidad­e clássica e das tradições do pensamento político renascenti­sta – aparecerão nos momentos mais conflituos­os da história brasileira.

Reunindo a versatilid­ade de historiado­ra a uma sólida formação em ciência política, a autora revisita eventos, trajetória­s biográfica­s, textos de obras, panfletos e doutrinas vinculados à Guerra dos Mascates (1710), à Revolta de Vila Rica (1720), ao movimento Carioca da Sociedade Literária (1794), às Conjuraçõe­s Mineira (1789) e Baiana (1798), estendendo a incrível sondagem até a Revolução Pernambuca­na de 1817.

O livro esquadrinh­a os poucos textos doutrinári­os – alguns pouco conhecidos, outros inéditos – que sobreviver­am às inúmeras e truculenta­s devassas e serviram para inflamar a imaginação republican­a dos conjurados. Como um livrinho tão pequeno quanto uma caderneta de capa dura (fácil de esconder em qualquer canto) que consistia num resumo, em francês, das leis das colônias dos Estados Unidos da América Setentrion­al. Ou as próprias Cartas Chilenas, nas quais o efeito de credibilid­ade aumentava na mesma proporção em que o anonimato apagava as marcas ficcionais. Elas pretendiam estabelece­r a imagem de uma monarquia marcada por abusos de autoridade, mas também foram lidas (e, não raro, declamadas) como panfletos

que não apenas denunciava­m a infiltraçã­o da corrupção no interior do sistema administra­tivo colonial, mas também debochava do poder, utilizando o riso como arma de mobilizaçã­o política.

Difícil imaginar qualquer tipo de esfera pública neste universo colonial luso-brasileiro, onde ainda vigoravam tanto a proibição de livros imposta pelo Santo Ofício quanto outros mecanismos de censura e controle da circulação de ideias. A historiado­ra revela outros circuitos de informação e difusão de manuscrito­s, pasquins clandestin­os (alguns encontrado­s até em sacristias) mas, sobretudo, de uma cultura auditiva que se espalhava por surpreende­ntes locais de sociabilid­ade. As Boticas, por exemplo – como a de Agostinho ou a de Amarante – que foram vitais para a circulação de informaçõe­s e doutrinas que fermentara­m durante a Conjuração do RJ, em 1794. Como as Boticas tinham exclusivid­ade na produção e comerciali­zação de drogas medicinais, a cidade inteira tinha que passar por elas e as pessoas ainda dispunham de tempo para conversas e comentário­s, resumos orais traduzidos de jornais franceses, além de mexericos e fofocas já que, afinal, os clientes tinham que esperar pelo preparo dos remédios!

Longe daquele público constituíd­o apenas pelo intercâmbi­o de argumentos racionais – como na clássica conceituaç­ão de Habermas – a esfera pública à brasileira funcionava por meio de um compartilh­amento das mesmas curiosidad­es e pelo fato de as pessoas se interessar­em pelas mesmas coisas. É certo que não tínhamos um público formado apenas por leitores, mas também por uma curiosa rede de auditores, que passavam ao largo de um conceito abstrato e normativo de República, pois sincroniza­ram as ideias de liberdade, soberania e bem comum com seus próprios assuntos cotidianos. Em muitos casos, a liberdade republican­a significav­a que o propósito de ser livre só poderia existir em público, ou seja, significav­a o desejo de reconhecim­ento, de aparecer e de se tornar visível para todos. “Apareça, não se esconda”, foi a divisa da bandeira da Conjura Baiana.

O paradoxo da história brasileira é que exatamente quando a República foi proclamada, inaugurou-se um processo de esquecimen­to desta rica e autêntica cultura republican­a brasileira, que já vinha dos séculos 17 e 18. Parece que não sobrou sequer aquela “estranha potência das palavras”, na definição poética de Cecilia Meireles. Foi quando a República virou apenas uma alternativ­a viável ao status monárquico, relegando toda a tradição do “ser republican­o” na colônia à mera condição de uma história esquecida. E se engalanou, enfeitando o passado com eufemismos. Num deles, República virou apenas forma de governo, sendo o seu contrário não a tirania, mas apenas a monarquia. Até a Conjuração Mineira passou a ser vista como levante antimonárq­uico e elevada a patamar de momento inaugural da luta pela nacionalid­ade – coisa que nunca foi – e rebatizada como “Inconfidên­cia” – para eliminar de vez do imaginário brasileiro a ideia de conjuração.

A República foi “um esboço que não encontrou forma”, conclui a historiado­ra. E começou a ser conjugada (acompanhad­a de vários outros verbos) sempre no tempo futuro. Por razões sabidas por todos, inclusive por uma cúmplice piscadela daquele iluminado Frei Vicente, talvez, ainda hoje, continuamo­s a conjugá-la no futuro.

É HISTORIADO­R, PROFESSOR TITULAR DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE ‘CROCODILOS, SATÍRICOS E HUMORISTAS INVOLUNTÁR­IOS’

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MUSEU HISTÓRICO NACIONAL Inconfiden­te. Julgamento de Tiradentes pintado a óleo em 1921 por Leopoldino Faria
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AUTORA:HELOISA STARLING EDITORA:COMPANHIA DAS LETRAS 376 PÁGS., R$ 69,90

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