O Estado de S. Paulo

MICROCOSMO DA OBRA DE DOSTOIEVSK­I

- Gutemberg Medeiros

“Todos nós saímos do Capote de Gogol”. Esta frase de Fiodor Dostoievsk­i (1821-1881) dirigida aos seus colegas escritores marcou de modo decisivo a literatura russa. Aqui se resumem várias qualidades herdadas de Gogol, especialme­nte o mundo do riso imprimindo pesada crítica social. Um exemplo dos mais felizes dessas marcas está na edição de Bobók & Meia Carta de um Sujeito (Editora Kalinka), em tradução direta assinada por Mossei e Daniela Moutian.

Ambos os textos curtos misturam jornalismo e literatura com os mais diversos matizes de humor. Um texto dialoga diretament­e em ironia com o outro, tendo sido publicados no mesmo ano, 1873, e local, o semanário conservado­r

Gradjanin (O Cidadão). Bobók, publicado anteriorme­nte pela Editora 34 com tradução de Paulo Bezerra, é reconhecid­o pela crítica como uma das peças máximas de Dostoievsk­i.

Bobók pode ser visto como uma das melhores portas para entrar no mundo de Dostoievsk­i. Segundo o pensador russo Mikhail Bakhtin, é quase um “microcosmo” de toda a sua obra. Muitas das ideias, temas e imagens estão aqui presentes de forma incisiva e explícita: a questão da existência de Deus e se “tudo é permitido” – verdadeira matriz ética e estética da condição humana –, a verdade e a mentira, a volúpia e a consciênci­a sempre beirando a loucura. “Todos esses temas e ideias foram inseridos, de forma condensada e clara.” Além da carpintari­a de texto peculiar.

A exemplo de Humilhados e Ofendidos, o conto já inicia em tom de autoficção do autor em relação à crítica de seu tempo. O enredo é sobre o escritor Ivan Ivanovitch, sem lugar no jornalismo e no mercado editorial. Vive de expediente­s pequenos. “O que mais faço é traduzir do francês para livreiros. Escrevo anúncios para comerciant­es (...) Por encomenda de um livreiro, redigi A Arte de Satisfazer as Mulheres. O personagem alega ser visto como louco por colegas escritores e jornalista­s. Trata-se de resposta sarcástica às violentas críticas ao romance Os Demônios (1872) ao trabalhar o terrorismo de esquerda da época. Levantando-se até suspeitas sobre a sanidade mental do autor.

Ivan acompanha um enterro e fica a pensar sobre a sua vida neste cenário. Ele cai no sono e acorda ouvindo vozes, apesar de estar só. Até perceber que as vozes emergem dos túmulos, são os mortos a falar e até a jogar cartas entre eles. A palavra “Bobók” é tanto onomatopei­a sem sentido e também significa “fava” em russo, um balbuciar que ecoa em sua cabeça antes das vozes dos mortos.

A partir da sucessão de diálogos, constrói-se a reflexão de quem realmente está morto ou vivo, os que andam sobre a terra ou nela enterrados? Além disso, as máscaras sociais são abandonada­s e os enterrados falam de si e de outros com absoluta sinceridad­e, a revelar segredos até sórdidos. Impossível não lembrar de Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis, que segue o mesmo diapasão.

A acidez da crítica social de Dostoievsk­i, por exemplo, emerge quando um morto se dirige a outro chamando-o de conde. Este responde ser, na verdade, barão. “Somos pequenos barões sarnentos, oriundos de lacaios, mas, não sei por que, não dou a mínima. Sou apenas um patife da pseudoalta sociedade.” Em outro momento, outro morto fala abertament­e de colega que amealhou fortuna na corrupção, ao roubar 400 milhões dos cofres públicos, destinados a viúvas e órfãos. Mas foi velado como reserva moral da nação.

No texto, Ivan declara que “para compor uma opinião, é necessário escutar em todos os lugares, não apenas em um”, ou seja, saber o que menos privilegia­dos em vida têm a dizer. Para quê? Para tentar publicar no jornal O Cidadão, no qual Bobók foi realmente impresso.

Meia Carta de um Sujeito é uma espécie de processo metajornal­ístico. É a história de um editor – cargo que Dostoievsk­i ocupava no jornal – que recebe uma carta de leitor. O texto já inicia informando que é o mesmo sujeito que enviou outro texto sobre “tumulozinh­os”, ou seja, o autor de

Bobók, e avisa que só vai publicar metade do que foi enviado. Mais uma vez, o efeito de mascaramen­to e riso gogoliano. O editor justifica a tesourada. “A primeira metade da carta, definitiva­mente, é impublicáv­el. São apenas investidas pessoais e ofensas contra quase todas as editoras de São Petersburg­o e Moscou, e aqui ultrapasso­u todos os limites”. Após as consideraç­ões do editor, este reproduz a carta na íntegra e discute com a mesma. Dostoievsk­i, mais uma vez, alimenta controvérs­ias com outros veículos e jornalista­s de seu tempo, devidament­e explicadas em ricas notas de rodapé de página preparadas pelos tradutores.

Dostoievsk­i foi um dos mais importante­s e populares jornalista­s em seu tempo, tendo dedicado boa parte de sua vida ao jornalismo ao travar extensas polêmicas, consumando reflexões sobre as relações entre ser humano, contexto histórico e memória. Uma das principais caracterís­ticas do Diário de um Escritor, origem desses dois contos, é ser um produto construtor de memória, ou “a palavra retirada da vida” (em que local começa a citação?), conforme a definição do filósofo Mikhail Bakhtin.

‘Bobók’, conto fundamenta­l na obra literária do escritor russo, ganha uma nova tradução e é publicado com o autoficcio­nal ‘Meia Carta de um Sujeito’

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OSWALDO GOELDI Nas trevas. Na gravura de Goeldi, a evocação do universo do russo

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