O Estado de S. Paulo

O ECLIPSE DAS MULHERES DOS FAMOSOS

- ✽ AUTORA, ENTRE OUTROS, DE ‘CENAS DO TEATRO MODERNO E CONTEMPOR­NEO’ (ILUMINURAS) Dirce Waltrick do Amarante ✽

A editora Urutau lançou este ano um breve manifesto, Pequeno Guia de Incríveis Artistas Mulheres que Sempre Foram Considerad­as Menos Importante­s que seus Maridos, assinado por Beatriz Calil e que apresenta uma lista de mulheres, todas atuantes no século 20, tão importante­s quanto seus maridos ou companheir­os, mas que acabaram obscurecid­as por eles.

Alguns nomes da lista poderão suscitar certa dúvida, pois são mulheres amplamente conhecidas. É o caso de Simone de Beauvoir, mulher de Jean-Paul Sartre. Mas, segundo Beatriz Calil, é justamente nesse tipo de apresentaç­ão que reside o problema, pois, para identifica­rmos a escritora, parece ser preciso relacionar seu nome ao do filósofo francês. Sartre, por sua vez, não precisaria ser identifica­do como marido de Simone de Beauvoir, ele basta por si mesmo.

Desse modo, para a autora, o mérito dessas artistas está por vezes associado ao fato de terem sido companheir­as de um grande homem.

A autora conta casos curiosos como o de Lee Krasner e Elaine de Kooning, que assinavam as suas obras apenas com as iniciais de seus nomes para que elas não fossem julgadas com base no trabalho de seus maridos, os pintores Jackson Pollock e Willem de Kooning; ou o caso de Françoise Gilot que, embora tenha sido uma grande pintora, é conhecida não por seu mérito artístico, mas por ter sido a “musa de Picasso”.

O livro traz à tona também histórias de mulheres que foram “vítimas” de seus companheir­os. Cita como exemplo a biografia de Camille Claudel e de Zelda Fitzgerald. Ambas acusaram seus companheir­os, Auguste Rodin e F. Scott Fitzgerald, de terem se apropriado de suas obras. Camille acusava Rodin de ter assinado algumas obras dela como se fossem suas; já Zelda afirmava que o marido teria plagiado partes de seu diário e suas cartas para compor seus romances. Coincidênc­ia ou não, ambas foram considerad­as “loucas” e morreram em sanatórios. Camille, nas três décadas que permaneceu no hospício, foi proibida de se comunicar com o exterior; apenas o irmão a visitava. Será que temiam que ela voltasse a acusar Rodin?

Outra história destacada por Beatriz Calil é a da artista cubana radicada nos EUA Ana Mendieta, que foi companheir­a do artista minimalist­a Carl Andre e morreu ao cair do 34.° andar do apartament­o que dividia com ele em Nova York. Andre foi acusado pela morte de Mendieta, mas acabou absolvido. A obra da artista cubana ainda não é devidament­e conhecida e, muitas vezes, seu nome ganha mais destaque pela morte trágica do que pela ousadia de suas experiment­ações artísticas.

Muitas mulheres salvaram literalmen­te a obra de seus companheir­os. A pintora alemã Gabriele Münter escondeu dos nazistas não só as suas obras como também as pinturas de seu amante Kandinski, ato que a deixou mais famosa do que sua própria produção artística.

Alguns poderão considerar Pequeno Guia de Incríveis Artistas Mulheres... um livro radical ou ressentido, que coloca na conta dos homens o fato de algumas artistas mulheres não terem alcançado o reconhecim­ento de seus companheir­os. Ou, talvez, o tema do livro seja visto como ultrapassa­do, pois, hoje em dia, muitas dessas mulheres já ganharam o devido destaque, ainda que sejam também conhecidas por terem sido companheir­as de X e Y.

A essas possíveis recriminaç­ões soma-se o fato de o livro ter sido escrito por uma mulher, o que torna a sua recepção ainda mais complexa. Valeria lembrar um texto de 1942, de Virginia Woolf. Nele, a escritora afirma o quão difícil é para uma mulher deixar de lado as expectativ­as que se têm dela na hora de escrever, principalm­ente sobre homens ou sobre livros de homens: “Querida, você é uma moça. Está escrevendo sobre um livro que foi escrito por um homem. Seja afável; seja meiga; lisonjeie; engane, use todas as artes e manhas do nosso sexo. Nunca deixe perceber que você tem opinião própria.”

Para aqueles que acham que o texto de Woolf é ultrapassa­do, cabe recordar que, como diz a escritora nigeriana contemporâ­nea Chimamanda Ngozi Adichie, “uma mulher não deve expressar raiva, porque a raiva ameaça”, e seu ressentime­nto deve “ferver em banho-maria”.

Para mostrar a atualidade de sua pesquisa, ao final do livro, sua autora faz um levantamen­to do número de artistas homens e mulheres com exposições individuai­s e representa­dos por galerias na cidade de São Paulo em 2017. A conclusão é que ainda hoje as mulheres seguem em desvantage­m com relação aos homens, pelo menos na maior cidade brasileira e com a vida cultural mais ativa.

A capa e as imagens que compõem o livro apagam as figuras masculinas. Na capa, a foto de grupo de personalid­ades artísticas do século passado mostra que as mulheres eram (ainda são) minoria no meio. Nas imagens que ilustram o miolo do livro, as artistas citadas aparecem como protagonis­tas, já que seus companheir­os são finalmente “apagados” de suas vidas.

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MUSÉE CAMILLE CLAUDEL Gênero. Robert de Niro por Elaine de Kooning (acima); à esquerda, escultura de Camille Claudel
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JOSEPH HU/NATIONAL PORTRAIT GALLERY

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