O Estado de S. Paulo

É DADA A LARGADA

Com surpresas positivas, o Festival de Toronto abre a temporada de premiações e dá início à corrida pelo Oscar com filmes centrados em mulheres

- / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

Destroyer, um thriller violento estrelado por Nicole Kidman, não é o tipo de filme para ganhar um Oscar ou ser premiado em Cannes. É muito brutal, vulgar e deliberada­mente abominável. Ideal para o Festival Internacio­nal de Cinema de Toronto, uma vitrine para ficções de gênero impiedosas e filmes de arte difíceis. O porte do evento propicia uma enorme variedade de obras e nos lembra que um filme de festival não precisa se conformar a uma ideia presumível de cinema. Na edição desse ano, 342 filmes foram apresentad­os, e o evento é tão grande quanto esteticame­nte diverso.

No decorrer das décadas, Toronto se tornou um festival em parte essencial porque, juntamente com os festivais de Veneza e Telluride, ele dá o pontapé inicial para a temporada de outono e a maratona conhecida como a corrida para o Oscar. A histeria dos prêmios rapidament­e se instalou depois da première de Uma Estrela Nasce, a mais recente narrativa de uma das mitologias mais perenes de Hollywood sobre estrelato e sacrifício. Seu diretor, Bradley Cooper, e Lady Gaga interpreta­m músicos que se tornam amantes e seguem destinos radicalmen­te diferentes. A estreia comercial se dará dentro de algumas semanas. Mas logo que um filme é exibido pela primeira vez, tem início o ciclo usual de aclamações e críticas.

Amplamente impulsiona­do pelo Oscar, esse ciclo não oferece nada de bom para os filmes ou para o público, especialme­nte porque coloca as probabilid­ades de prêmios acima da arte, da cultura e da história. Não surpreende que os frequentad­ores de festivais estejam dispostos a pagar mais para assistir a um filme que ainda não foi atacado por comentário­s ruins ou taxado de decepciona­nte antes de ser lançado nos cinemas ou desaparece­r nos serviços de streaming. Em Toronto, o público (600 mil no ano passado) assiste aos filmes na grande tela, veem as celebridad­es, participam das entrevista­s com diretores e artistas, e tem o prazer de descobrir filmes por si mesmos.

Uma das mais agradáveis descoberta­s de 2018 foi o número de filmes centrados em mulheres.

Destroyer foi uma das mais inesperada­s exatamente porque a sua premissa – Nicole Kidman interpreta Erin Bell, uma detetive alcoólatra e dissoluta de Los Angeles com um passado sordidamen­te violento – parece absurda, até risível. Mas o filme funciona, em grande parte porque a diretora Karyn Kusama, conhecida pelo seu filme independen­te Girlfight, insistiu na malevolênc­ia do material e manteve sob controle o sentimenta­lismo de modo tão veemente quanto a diligente estrela da história. É o autêntico filme violento, sensaciona­lista e chocante, com muito sangue, desespero e pessoas malvadas.

É também uma viagem incomodame­nte envolvente. Embora Destroyer lembre abertament­e o épico de Abel Ferrara de 1992, Vício Frenético, ele é muito específico. E como ocorre com várias outras seleções em festivais, é um história da catastrófi­ca queda profission­al e pessoal de um personagem, com indícios de uma possível redenção. À primeira vista Nicole Kidman está quase irreconhec­ível, seu rosto cuidadosam­ente manchado e usando casacos de couro, os olhos vermelhos que parece que ela está numa ressaca permanente. Seu desempenho é tão bom, contudo, que logo você se concentra nele e não na sua imagem transforma­da.

É muito gratifican­te ver uma atriz como Nicole Kidman usar tudo que tem no seu arsenal artístico e ao mesmo tempo assumir o risco de não conquistar a simpatia ou amor da plateia. Erin Bell não é uma figura simpática ou que alguém tenha vontade de se relacionar, esteja ela embriagada ou atirando com uma arma. Mas a percepção é de que é um ser humano. A mesma coisa é verdade no caso da diva pop Celeste protagoniz­ada por Natalie Portman em Vox Lux, outro grande destaque do festival. Dirigido pelo ator Brady Corbet, o filme começa com um tiroteio em uma escola do qual Celeste

sobrevive e, quando uma música que canta no funeral se torna sensação na internet, ela se transforma num novo deus, o que provavelme­nte explica o título em latim do filme que significa voz e luz.

Narrado por Willem Defoe e com uma brilhante trilha sonora de Scott Walker e canções de Sia, Vox Lux gira em torno de ideias sobre a violência solta em corpos e almas – em vez de oferecer uma mensagem sobre os perigos da celebridad­e. Celeste ascende e depois tropeça (Natalie Portman oferece um dos tropeços mais oportunos que já vi) às vezes de modo hilário. Aparenteme­nte os outros filmes que tratam da ascensão e queda de estrelas mulheres não são do mesmo tipo dos metacoment­ários sobre lutas enfurecida­s e abusos com que as mulheres do setor de entretenim­ento continuam a se defrontar.

Buscar o sinal dos tempos em um punhado de filmes é sempre insano. Mesmo assim é difícil não relacionar filmes tão diferentes como Uma Estrela Nasce e Vox Lux com o que vem ocorrendo fora do cinema, como as notícias sobre o executivo da CBS Les Moonves (obrigado a se demitir por causa de acusações de assédio sexual contra mulheres) e uma manifestaç­ão no sábado em Toronto em favor da igualdade de gênero realizada na frente da sede do festival. O diretor Alex Perry talvez não tenha tido a intenção de enfatizar a questão da política sexual com seu filme Her Smell, sobre uma cantora punk (Elizabeth Moss), mas mesmo as chamadas mulheres autodestru­tivas têm muita ajuda no caminho da sua derrocada.

O mundo habitado pela personagem principal do filme Gloria Bell não é glamouroso e nem sórdido como em alguns outros filmes selecionad­os com foco em mulheres. Ele é intenciona­lmente mais comum. Escrito e dirigido pelo cineasta chileno Sebastián Lelio, é um remake do seu próprio filme em língua espanhola Gloria (de 2013), estrelado por Paulina García como uma divorciada. Uma igualmente maravilhos­a Julianne Moore estrela agora esta nova versão, ambientada em Los Angeles.

Ali Gloria trabalha, cuida da sua família (Michael Cera e Caren Pistorius interpreta­m seu filho e filha adultos) e está em busca do amor, com frequência girando por clubes de dança escuros. Uma noite ela depara com Arnold (John Turturro), um encontro que dá início a uma intimidade molesta que se torna ao mesmo tempo erótica, cômica e enterneced­ora. Um dos prazeres de um filme como Gloria Bell é a maneira com ele transforma uma vida comum numa ficção envolvente.

Nada especialme­nte excepciona­l acontece. Gloria não se torna uma depravada ou uma criminosa, como no caso das mulheres em Widows, de Steve McQueen, um filme de arte explorando o cinema que nunca é tão bom quanto suas estrelas principais (Viola Davis e Elizabeth Debick, especialme­nte). Lelio parte da suposição de que existe muito material para enredo no ato de se apaixonar, ter filhos, ou simplesmen­te despertar de manhã.

Os personagen­s do adorável, às vezes melancólic­o If Beale Street Could Talk, o mais recente filme de Barry Jenkins (diretor de Moonlight, precisam lutar para ter uma vida normal sem serem molestados. Baseado num romance homônimo de James Baldwin de 1974, o filme segue um jovem casal, Tish e Fonny – interpreta­dos por KiKi Layne e Stephan James – quando iniciam sua vida juntos. Antes eles viviam uma vida boêmia num apartament­o no porão sombrio em West Village, com uma banheira no centro. E ali, enquanto Tish relata sua história com a voz em off, os dois planejam seu futuro e Fonny reflete, transforma­ndo blocos de madeira em escultura em meio ao redemoinho de fumaça do cigarro.

Em muitas histórias boêmias, a luta quase sempre é interna. Neste caso, contudo, Tish e Fonny também sentem o peso de toda a história do racismo americano que afeta seus momentos cotidianos aparenteme­nte simples, como encontrar um lugar para viver ou um supermerca­do. (Há também uma alusão ao El Faro, um dos restaurant­es favoritos de Baldwin).

Jenkins realizou um belo filme. E ele é particular­mente bom em criar intimidade e empatia com close-ups que são tristes e conturbado­s. E por meio dos seus personagen­s ele cria um mundo que é obstinadam­ente pessoal e nunca deixa de ser político.

 ?? ANNAPURNA PICTURES ?? Inesperado. A atriz Nicole Kidman protagoniz­a o thriller de ação ‘Destroyer’ como uma espiã com um passado violento, em uma das surpresas da edição de 2018 do Festival de Toronto
ANNAPURNA PICTURES Inesperado. A atriz Nicole Kidman protagoniz­a o thriller de ação ‘Destroyer’ como uma espiã com um passado violento, em uma das surpresas da edição de 2018 do Festival de Toronto
 ?? SONY PICTURES ??
SONY PICTURES
 ?? ANNAPURNA PICTURES ?? Estreias. Julianne Moore (acima) estrela ‘Gloria Bell’; abaixo, adaptação de livro de James Baldwin pelo diretor de ‘Moonlight’
ANNAPURNA PICTURES Estreias. Julianne Moore (acima) estrela ‘Gloria Bell’; abaixo, adaptação de livro de James Baldwin pelo diretor de ‘Moonlight’

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil