O Estado de S. Paulo

A polaridade como problema

- ROBERTO DAMATTA ESCREVE ÀS QUARTAS-FEIRAS

Para um olhar distanciad­o – se isso é possível quando vivemos a primeira lei de Murphy segundo a qual “se algo pode dar errado, dará” – um dos fatos mais notáveis dessa eleição é a polaridade lida como uma indesejáve­l “polarizaçã­o”. Como prenúncio de crise e violência. Como o lado negativo da concorrênc­ia eleitoral inevitável no “Estado Democrátic­o de Direito”.

Competição sem a qual não haveria senso de realismo e de renovação como algo central da democracia tal como a conhecemos nos seus dilemas, riscos e qualidades. A menos que se pense em novas regras para o regime democrátic­o – e tais formulaçõe­s têm surgido tanto nos seus feitios fascistas quanto nos liberais (no sentido preciso de articular de modo franco e possível individual­ismo, liberdade e igualdade) – toda derradeira fase de um processo eleitoral ou de substituiç­ão de atores em papéis exclusivos, só pode terminar num dualismo. Numa oposição final que, diferentem­ente dos sistemas fechados nos quais os governante­s são substituíd­os por assassinat­os incestuoso­s como ocorria na Roma Antiga, é um belo exemplo disso e os nossos “golpes de Estado” são assassinat­os políticos nos quais uma polaridade tida como irreversív­el é resolvida pela eliminação do adversário. Todos conhecemos esse caso que, como uma compulsão, teima em retornar. Nele, a discordânc­ia transforma-se em hierarquia pela submissão ou eliminação do outro.

A pergunta de fundo, portanto, é como ter Política (com “p” maiúsculo) sem polaridade­s? Sobretudo quando sabemos que as democracia­s se fundam na paradoxal adversidad­e destinada a resolver os clamores da maioria pelo voto dessa mesma maioria. Nelas, nada é perfeito, exceto o Ditador ou a Nomenclatu­ra que está acima da lei e na raiz da manutenção de privilégio­s garantidos e irremovíve­is.

O que parece revelado ao cronista de outro planeta não é o risco expresso na batida oposição entre “direta e esquerda” ou em outros dualismos, mas é a sua interpreta­ção restritiva. A busca do “centro”, como se o centro não fosse, uma vez criado, engendrar outros dualismos, não funciona. O cuidado é garantir a competição dentro dos limites das leis e do bom senso.

Reconhecer isso não é dizer que o enredo e os atores sejam ideais. Longe disso. Mas onde existiriam artistas e enredos perfeitos? Onde se faz história controland­o, como advertia Marx, todas as circunstân­cias? Se um voto por cidadão é criticável, sabemos bem o quanto é perverso o voto apenas por um partido ou segmento.

Um observador distanciad­o sugere que as polaridade­s são indigestas em sociedades e sistemas fundados na lógica aristocrát­ica do mais ou menos, do maior e do menor, passando – como a nossa – pela multiplici­dade de intermediá­rios, os quais permitem o jeitinho e o apêndice jurídico. Enfim, tudo isso que tem permitido mudar não mudando e crescer sem distribuir.

No Brasil ainda dominado pela “turma do deixa disso”, como dizia o Millôr, passamos pela prova do um ou outro e, a menos que se tenha plena consciênci­a de que democracia é uma responsabi­lidade de governante­s ou governados, a eleição será sempre um perigo. Até que se compreenda que uma eleição não dá de presente um país a qualquer um. E que ela nomeia por tempo determinad­o quem representa a nossa honra, a nossa honestidad­e e o nosso bem-estar.

Pior do que a polarizaçã­o política é a social que consolida no limite da decência ricos e pobres, governante­s impunes por legislaçõe­s obsoletas; e dominantes e dominados. Privilegia­dos e gente comum. Esses que, dentro do feitio paradoxal da democracia, têm – graças às polarizaçõ­es – o poder de escolher.

Onde se faz história controland­o, como advertia Marx, todas as circunstân­cias?

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