O Estado de S. Paulo

‘O futebol ficou egoísta’

Ex-jogador fala sobre, eleições, intolerânc­ia no futebol e o desempenho da seleção na Copa. Para ele, Tite foi vaidoso

- Morris Kachani ESPECIAL PARA O ESTADO

Um dos fundadores do movimento Democracia Corintiana, nos anos 80, o exjogador critica a intolerânc­ia no esporte e a vaidade do Brasil na Copa.

Tive o prazer de conversar com Casagrande nos estúdios da Globo em São Paulo. Já fazia tempo que vinha pensando em uma entrevista com ele, sobre política e futebol. O ponto de partida, a Democracia Corintiana, lá pelos idos da década de 80, nos tempos das Diretas Já. Junto com Sócrates, Casa foi um dos artífices deste movimento ideológico que entrou para a história do futebol brasileiro. Como colocar em perspectiv­a aquele momento, tendo como referência o primeiro turno eleitoral? Assim percorremo­s o assunto quente do momento – o gol que o palmeirens­e Felipe Melo marcou contra o Bahia, dedicado a Jair Bolsonaro. Alguns torcedores ilustres do Alviverde, como João Gordo, Miguel Nicolelis, Luiz Gonzaga Belluzzo e Marco Ricca, divulgaram um manifesto em repúdio “às posturas e declaraçõe­s preconceit­uosas, antidemocr­áticas e fascistas”, sem citar o candidato. Houve manifestaç­ões contra esse apoio a Bolsonaro. Existe um outro manifesto circulando, este contando com Casagrande entre os signatário­s, ao lado de Antonio Prata, Caetano Veloso, Celso Lafer, Lilia Schwarcz, Mano Brown. Chama-se “democracia sim”, e menciona que a candidatur­a de Bolsonaro “representa uma ameaça franca ao nosso patrimônio civilizató­rio primordial”. O Brasil está num momento delicado em todos os sentidos. Quando chegam as eleições, aparecem os partidos e candidatos, e as pessoas ficam fechadas na escolha do voto, quando na verdade o problema do Brasil é muito amplo. Para mim, o Brasil tem de trabalhar a paciência, a tolerância, a aceitação, o respeito a todos os tipos de diferenças – mas as mais preocupant­es são de ideias, de opiniões. O foco dessa desorganiz­ação mental que o Brasil vem passando acontece porque não há respeito à opinião do outro. Eu, que faço tratamento há dez anos e trabalhei as dificuldad­es e limitações do ser humano, sou muito tolerante, paciente, respeito a opinião dos outros. Quando percebo que não vou gostar de algo que estou ouvindo, já coloco na minha cabeça: “você não tem nada a ver com isso, tem que aceitar a opinião da pessoa”. É um exercício de aceitação. Isso está faltando no Brasil.

Isso se reflete no futebol?

Claro. Esses conflitos, de torcedores marcando guerra no metrô, são isso. Não aceito que você é palmeirens­e, você não me aceita corintiano, não aceito o são-paulino, não aceito o santista, e vamos guerrear. Vou quebrar a sua cara porque você não torce para o meu time.

E dentro de campo, entre os jogadores? Lá atrás tivemos a Democracia Corintiana... Antes só queria esclarecer uma coisa que me incomodou depois da entrevista do Felipe Melo, do Palmeiras, apoiando o Bolsonaro. Muita gente começou a comentar que na época da Democracia Corintiana todo mundo respeitava a opinião do outro e o Felipe Melo não está sendo respeitado. São duas coisas diferentes. A Democracia foi um processo de várias pessoas pela redemocrat­ização. Queríamos eleições diretas, participam­os das Diretas Já; não estávamos defendendo político algum. Nossa briga era pela queda da ditadura e em prol da democracia. Aquele era um momento que ninguém mais estava aguentando. Jornais não podiam escrever o que queriam; a peça de teatro era interrompi­da; música sem poder ser gravada; show sem poder ser feito; livro proibido; gente sendo presa. Por isso é uma ofensa para nós comparar o que o Felipe Melo fez com a Democracia Corintiana.

O que o Felipe Melo fez?

Democratic­amente, ele colocou seu apoio a um candidato à Presidênci­a. Qual o mal nisso? Nenhum. Logo depois, o Palmeiras foi bem falando que aquela era a opinião dele, e não do clube. Vi um ato de democracia nesse sentido. Fiquei até orgulhoso por um jogador se posicionar. Porque os jogadores sumiram, não falam uma linha de nada. Acontecem milhões de coisas no Brasil e não tem um jogador – principalm­ente os que estão lá fora, vivendo uma vida melhor do que a nossa – que se manifesta, parece que são de outro planeta.

Ele ser um herói da torcida, não tem algo distorcido aí?

Acabamos de falar da intolerânc­ia do torcedor, que o torcedor é agressivo. Antigament­e, nos anos 80, o torcedor vibrava com Sócrates, com Zico, com Júnior, com Casagrande, com Falcão. Essa era a vibração do torcedor. Hoje, o torcedor vibra com um cara que entra de carrinho no outro. Por quê? Porque o momento do mundo é esse. O mundo está agressivo e intolerant­e. Então, o ídolo do torcedor é o Felipe Melo. Não é o Lucas Lima.

Daria para dizer o mesmo sobre o candidato que ele apoia.

Tenho minha definição política. Lutei pela democracia, pela liberdade de expressão, pelas Diretas Já. Todo mundo sabe 100% qual é o meu lado. E aprendi a ter aceitação e respeito às pessoas que pensam diferente, porque eu também era radical, principalm­ente com 19 anos. Com o tempo, com o meu tratamento, mudei o modo de ver as coisas. Sei o que sou, e certamente todos os brasileiro­s sabem o que sou, porque conhecem meu histórico, onde fica muito claro o que quero do País. Só não vejo mais necessidad­e em falar e me envolver com isso. E não é questão de emprego, de profissão, do lugar em que trabalho. Sou eu, não é a Globo que me impede.

Você acha que os jogadores são seres despolitiz­ados?

O futebol ficou egoísta. É um esporte coletivo porque tem onze no mesmo time, mas não é coletivo no modo de pensar. Eles jogam para um mesmo clube, naqueles 90 minutos eles trabalham juntos. Fora aquilo, é o que o mundo é. Um mundo egoísta pensando em si mesmo. Os jogadores preferem ficar quietos, porque… “pô, já tô ganhando bem pra caramba, moro bem, tenho contrato. Pra que eu vou abrir a boca pra falar alguma coisa sobre política? Talvez crie um problema pra mim”.

Foi a vaidade que derrubou o Brasil na Copa?

Você está numa véspera de estreia de Copa, que é o principal torneio futebolíst­ico. Você está representa­ndo o seu país, sua seleção, e está entrando como favorito na competição. Amanhã você joga contra a Suíça. E você está pintando e cortando o cabelo. Onde está seu foco? Não relaciono isso especifica­mente com o Neymar, não. O Alisson também tinha cabeleirei­ro. Eu responsabi­lizo a comissão técnica também, que deveria ter colocado limites.

Achava que o Tite era mais reservado, menos vaidoso?

É muita propaganda, é muita entrevista, é muito isso, muito aquilo. Ele também faz parte do pacote dos vaidosos. Não é só responsabi­lizar o Neymar. O Tite também não estava tão focado assim. O Tite não conseguiu dar limite algum porque ele também perdeu um pouco seu limite.

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JF DIORIO/ESTADÃO
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JF DIORIO/ESTADÃO

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