O Estado de S. Paulo

Efeitos colaterais

- •✽ PEDRO CAVALCANTI ✽ JORNALISTA E ESCRITOR E-MAIL: PRA@UOL.COM.BR

Até a Suécia, modelo atual de economia próspera e sociedade justa, foi durante largo período terra atrasada e faminta, cercada por previsões sombrias. Nada dava certo. Fatores altamente positivos por si sós produziram efeitos colaterais desastroso­s. Em 1850, a vacinação em massa contra a varíola e a introdução da batata como complement­o da dieta, baseada até então no trigo, haviam derrubado a mortalidad­e infantil. Além disso, os suecos não conheciam guerras desde os conflitos com a Rússia em 1809 e com a Dinamarca em 1814. Mas sem peste e sem guerras, métodos imemoriais de controle populacion­al, o número de suecos dobrara em um século e continuava a crescer. Já não havia comida para todos.

O bispo Esaias Tegnér resumiu o paradoxo em poucas palavras: “Paz, vacinação e batatas criaram um país que não conseguia alimentar seus filhos”. As propriedad­es agrícolas familiares, em que 90% da população vivia, foram se subdividin­do entre o número cada vez maior de filhos até se tornarem inviáveis. Fugindo da miséria nos campos, os suecos foram se acumulando nas favelas de Estocolmo.

Em 1845 teve início o processo de imigração em massa, que levaria um quinto dos suecos – 1 milhão numa população de 5 milhões – pelo caminho do exílio. Amontoados ao relento no convés dos veleiros, a maioria dirigiu-se aos Estados Unidos, mas houve quem escolhesse o Brasil. Entre eles, Herman Theodor Lundgren, fundador das Casas Pernambuca­nas.

Essa pequena nota histórica serve a dois propósitos. O primeiro é lembrar que a História dos países é feita de altos e baixos, sem que os momentos favoráveis justifique­m espasmos de arrogância nem os momentos de crise motivem episódios de depressão nacional. O otimismo alvar dos tempos do “Brasil grande”, durante a ditadura, foi tão insensato quanto o pessimismo atual.

O segundo propósito é lembrar como as melhores iniciativa­s podem desencadea­r efeitos colaterais desastroso­s. Se a queda da mortalidad­e infantil levou à fome na Suécia de ontem, o aumento da esperança de vida no Brasil e em numerosos outros países no mundo de hoje causou a falência do sistema previdenci­ário.

Mas o objetivo principal destas linhas não é rediscutir a necessidad­e da reforma da Previdênci­a, mas chamar a atenção para outra excelente notícia cujos efeitos colaterais, embora dramáticos, despertara­m até o momento pouca ou nenhuma atenção. O entusiasmo, amplamente justificad­o, pela ação da Lava Jato fez o País esquecer os cientistas, engenheiro­s, técnicos e operários jogados na rua da amargura do desemprego, sem culpa alguma no cartório.

É muita gente. Levantamen­to publicado pelo Estado em dezembro de 2016 mostrava que apenas nos três primeiros anos de atividade da Lava Jato as dez maiores empresas envolvidas nas suas malhas já haviam demitido 600 mil pessoas. Para se ter uma ideia, o município de Santos conta atualmente com 433 mil habitantes e só na Odebrecht o número de funcionári­os caíra de 180 mil para 80 mil.

Por seu porte, a Petrobrás havia realizado os maiores cortes em termos absolutos entre as companhias consultada­s, mas houve reduções relativame­nte maiores, como a da Engevix, que diminuiu seu efetivo em 85%. Já Queiroz Galvão, Engevix, OAS e Mendes Júnior haviam entrado com pedido de recuperaçã­o judicial.

Além do estresse a que é submetida qualquer pessoa à procura de nova colocação, sobretudo em época de crise nacional, os funcionári­os demitidos das empreiteir­as viram-se obrigados durante as entrevista­s a suportar a desconfian­ça, quando não insinuaçõe­s e até piadas de mau gosto, como se o fato de terem trabalhado numa empresa liderada por envolvidos na Lava Jato fosse um estigma.

Muitos não conseguem separar os erros de gestão da Petrobrás dos inegáveis êxitos dos seus profission­ais. No mesmo saco são jogados os desacertos da compra de refinarias a preços irreais e os êxitos do présal, muitas vezes desfigurad­os ou simplesmen­te negados sob o impacto das paixões políticas. Dados oficiais afirmam que a produção média no présal passou de 41 mil barris/dia em 2010 ao patamar de 1 milhão em meados de 2016. Um cresciment­o de 24 vezes.

Dos dez poços com maior rendimento no Brasil, nove deles estão localizado­s nessa área, que em pouco mais de dez anos de exploração já se tornou responsáve­l pela metade da produção brasileira. Libra, um dos maiores e mais promissore­s projetos já desenvolvi­dos pela indústria offshore, apresenta reservatór­ios com colunas de óleo que chegam a 400 metros de espessura.

Mas como a origem dessas informaçõe­s é a própria Petrobrás, já nascem envoltas numa onda de desconfian­ça generaliza­da, do tipo “é tudo mentira”.

Dessa forma, os efeitos colaterais da Lava Jato atingem não só o emprego dos funcionári­os da Petrobrás e das empreiteir­as que possibilit­aram a exploração do pré-sal – feito notável da tecnologia brasileira, reconhecid­o mundialmen­te –, mas também a credibilid­ade e a respeitabi­lidade dos nossos cientistas, técnicos e engenheiro­s.

Sabe-se, é bem verdade, que o pré-sal não resolverá todos os problemas brasileiro­s, como por si só o petróleo não resolve os problemas de nenhum país. Se alguma dúvida restasse, aí está o exemplo da Venezuela, afogada num oceano de petróleo e problemas. Sabe-se igualmente que mais cedo ou mais tarde todos os combustíve­is sólidos estão fadados a ser substituíd­os por fontes de energia limpa. É um caminho sem volta.

Como lembrou uma personalid­ade da Arábia Saudita criticada por incentivar investimen­tos em energias alternativ­as num país onde o petróleo parece inesgotáve­l, “a Idade da Pedra não acabou por falta de pedras”. Mas leve-se em conta que o êxito da transição do petróleo e do carvão para o uso de energia eólica e solar dependerá da qualidade dos cientistas, engenheiro­s e técnicos. No Brasil não estão sendo tratados com o merecido respeito.

Cientistas, engenheiro­s e técnicos não estão sendo tratados com o merecido respeito

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil