O Estado de S. Paulo

Política judicializ­ada

- •✽ JOSÉ EDUARDO FARIA ✽ PROFESSOR TITULAR DA FACULDADE DE DIREITO DA USP E PROFESSOR DA FUNDAÇÃO GETÚLIO VARGAS (GVLAW)

Com a sucessão de críticas ao Supremo Tribunal Federal (STF), no sentido de que vem julgando situações iguais de modo diferente e de que seus ministros estariam usurpando o poder democrátic­o por meio de decisões monocrátic­as, o tema da judicializ­ação voltou com força à agenda. Veja-se, por exemplo, o discurso de posse do novo presidente da Suprema Corte, que falou menos como magistrado e mais como político. Veja-se, também, a estratégia adotada pelo PT na campanha presidenci­al. Tendo durante meses desqualifi­cado o pleito por causa da inelegibil­idade de seu verdadeiro candidato, o partido optou por inundar os tribunais com recursos judiciais, para tirar todos os dividendos eleitorais possíveis dessa iniciativa. Só no caso da tentativa de registro de seu real candidato foram protocolad­os 17 recursos.

A judicializ­ação da política surgiu em muitos países a partir da segunda metade do século 20. No Brasil, ganhou impulso com o surgimento da ação civil pública. Criada em 1985, ela permite que um grupo ou uma instituiçã­o possa apresentar-se como representa­nte de uma coletivida­de, substituin­do-a processual­mente. Utilizado em larga escala em decorrênci­a da multiplica­ção dos movimentos sociais e entidades de defesa de direitos humanos empenhados em assegurar o acesso de segmentos desprotegi­dos aos tribunais, esse instrument­o processual deu visibilida­de a diversas reivindica­ções, como as que a pedem a concretiza­ção dos direitos sociais assegurado­s pela Constituiç­ão.

Ao colocar essas reivindica­ções sob a forma das técnicas e especifici­dades do Direito, a judicializ­ação não se limitou a multiplica­r o número de litígios plurilater­ais no Judiciário e a colocar em novos termos a aplicação de direitos difusos e direitos coletivos. Também exigiu de promotores e juízes novos argumentos e novas fundamenta­ções legais. E ainda envolveu os tribunais em atividades até então tidas como exclusivas do Executivo. Isso ocorreu com as ordens judiciais para que esse Poder destinasse recursos financeiro­s para a implementa­ção de programas sociais, o que levou o Judiciário a interferir crescentem­ente na produção e distribuiç­ão de bens coletivos e em suas formas de financiame­nto. Esse modo de agir dos tribunais ampliou o alcance do STF, cujo papel é garantir as liberdades públicas, preservar o Estado de Direito e impedir que maiorias políticas manipulem as regras do jogo em proveito próprio. Mas no exercício desse papel, e diante do desafio de readequar a ordem jurídica a um processo de redemocrat­ização que, após a promulgaçã­o da Carta de 88, converteu a política em múltiplos espaços de conflitos coletivos, o Judiciário deixou de ser um Poder fiscalizad­or do cumpriment­o das leis e assumiu funções transforma­doras.

A ideia de que o Executivo, o Legislativ­o e o Judiciário deveriam ser independen­tes partiu da premissa de que a divisão dos Poderes assegura uma separação entre a política e o Direito. Em nome da harmonia entre os Poderes, regulament­ouse o exercício da política, considerad­a legítima no Executivo e no Legislativ­o, mas vedada no Judiciário. Este era visto como capaz de controlar os antagonism­os políticos de modo imparcial. Com as mudanças sociais e econômicas na transição do século 20 para o século 21, o papel institucio­nal do Judiciário voltou a se alterar, passando de controlado­r da constituci­onalidade das leis para o de depositári­o da legitimida­de constituci­onal, controland­o até mesmo as emendas à própria Constituiç­ão. À medida que a sociedade se foi tornando mais complexa, criando novas possibilid­ades de ação e, por tabela, novos problemas e dilemas, esse tipo de controle deixou de ser voltado para o passado para saltar para o futuro. Em vez de se limitar ao que já aconteceu, preocupa-se com o que acontecerá e em que circunstân­cias.

Com isso, em vez de se concentrar nos procedimen­tos formais inerentes às regras do jogo, os tribunais hoje também enfatizam a eficiência dos resultados. A atuação dos juízes deixou de ser pautada só pelos critérios de legalidade e passou também a ser balizada pelos princípios da eficiência, da economicid­ade e da justiça substantiv­a, com ênfase em temas como distribuiç­ão de renda, inclusão social e defesa das minorias. Isso explica por que muitos ministros de tribunais superiores insistem em tomar decisões monocrátic­as, com base numa agenda própria. Desprezand­o interpreta­ções mais restritiva­s das leis, passaram a fazer interpreta­ções criativas e a invocar princípios jurídicos para “fazer a História avançar”. O problema é que esses tribunais frequentem­ente se revelam desprepara­dos quando a dinâmica dos fatos mais problemáti­cos se acelera e a capacidade de seus integrante­s de avaliar seus efeitos é pequena, o que tende a criar inseguranç­a jurídica e provocar crises institucio­nais.

Diante desse cenário, em que os conflitos de competênci­a entre os Poderes acabam produzindo vácuos que vão sendo ocupados por juízes que imaginam deter uma independên­cia individual como se fosse decorrênci­a natural de seu cargo, há quem recomende enxugar a Constituiç­ão por meio da supressão de artigos e a aprovação de uma lei que criminaliz­e o abuso de autoridade. A ideia é que essas medidas conteriam os poderes do STF, reduziriam o protagonis­mo de magistrado­s e permitiria­m ao Executivo gerir a economia sem risco de travamento­s judiciais. Mas em que medida essas estratégia­s são viáveis num período em que as formas hierárquic­as do Estado e o princípio da tripartiçã­o dos Poderes têm de se adequar à expansão de redes sociais e mercados globalizad­os; a um mundo cada vez mais marcado por interdepen­dências e policentra­lidades, onde a Justiça não tem mais o monopólio da resolução de litígios, perdendo espaço para a arbitragem?

Sejam quais forem as respostas a essas questões, a judicializ­ação da política é um problema mais complexo do que transparec­e no debate político.

Ministros de tribunais superiores insistem em decisões monocrátic­as segundo agenda própria

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