Noite prosaica, calma na minha rua
Sozinho em casa, minha mulher foi a um coquetel de trabalho, estava linda e sorridente quando saiu. Minha filha foi ver a Bienal com um convite especial, a mostra ainda não estava aberta para o público. Sozinho, me deu fome. Desci para o Vianna, bar na rua atrás da minha, onde fiz o lançamento de um livro há alguns anos e o bairro inteiro compareceu, foi uma festa nossa que me lembrou a atmosfera do primeiro jantar do jovem personagem de Roma, filme de Fellini. Todos se conheciam, conversavam, sabiam da vida de uns e outros. Noite bastante fresca, pedi uma omelete de queijo gruyère, com uma saladinha e tudo me pareceu a França, imaginação é tudo...
Gostei de ver um casalzinho que tomava chope e conversava, conversava, conversava. Os celulares ficaram abandonados na mesa, soltos, nem chamaram, nem foram chamados, nada daquela fissura de ficar mandando e recebendo mensagens ou instagrams ou o que fosse. Na saída, passei pela mesa deles e confessei: “Há muito não via duas pessoas a conversar realmente. Nem por um minuto olharam para os telefones, entretidos um com o outro. Viva”. Surpresos, eles riram, agradeceram. Nem tudo está perdido.
Dado o friozinho não havia muita gente na rua. E olhe que por aqui está cheio de bares. Passei por um casal talvez cinquentão, os dois me cumprimentaram: “Boa noite, escritor”. Assim me chamam por aqui. Outros dizem mestre. Há quem prefira professor, para eles é um título honorífico. Esse tempo já existiu. Segui, o dono da farmácia me apertou a mão, “leva nada hoje?”, como se a cada dia ou noite eu levasse alguma coisa. Continuei, jovens me acenaram do outro lado da calçada, da hamburgueria Underdog, excelente carne, principalmente um shoulder maravilhoso. Reino de jovens, enchem a calçada, cervejas na mão, conversam, é o mesmo clima do antigo footing. Na outra quadra tem o Cão Veio, cheio de tatuados, barbudos, casacos de couro, há tempos, curioso e faminto, quase consegui lugar, mas éramos três e uma garçonete nos disse: “Pena, essa mesa é para quatro, não pode”.
Mais à frente uma japonesinha (mora no meu prédio): “Boa noite, escritor”. Uma noite de paz, tranquila, de vida calma, normal, cotidiana, prosaica, pessoas se cumprimentando, entrando na padaria, no supermercadinho expresso, para compras rápidas, boa noite escritor, daqui e dali, como se fosse– eé–umav ilado interior, nos conhecemos todos, sabemos o que cada um faz, quem é mulher de quem, marido ou namorado de quem, alguns levam os cachorros para o último xixi, alguém passa apressado com uma cesta cheia de Heinekens, o restaurante Arturito, chique, caro, sempre com fila na porta, parece deserto, a lojinha de produtos de beleza desce as portas, sigo para casa.
Muitas vezes essap az mecon tamina, gosto, preciso dela,éav id anormal pulsando, escorrendo. Entro em casa, os gatos me esperam na porta, dou comida aos dois. Não sei se vejo tevê ou se leio um livro. Bom ter acabado o romance, entregue, vê-lo publicado. Porque acabou aquela ânsia de escrever continuamente, resolver problemas, a cada dia, cada momento, ter dúvidas sobre um trecho, um nome, uma situação. Ao mesmo tempo, vem um vazio, uma coisa estranha, de paz e inutilidade. Prefiro abrir um livro que me chamou na livraria, dia desses. Não tem essas coisas com vocês? Um livro chamar? E quando vê você está comprado?
Esse foi uma pequena antologia poética de Anna Akhmátova, excelente poeta russa, nascida em 1889 e falecida em 1966. Considerada hoje uma das mais importantes poetas da Rússia, viveu um vida dramática, foi perseguida pelo governo stalinista, que não a deixava publicar, viu o primeiro marido fuzilado, o terceiro marido morreu em um campo de concentração e o filho dela foi preso. Segundo Lauro Machado Coelho, belo crítico, tradutor e especialista em ópera (comprei seus livros para minha filha), Anna produziu um dos maiores testemunhos literários do sofrimento individual sob a opressão política. Apago a luz, a noite está sem um ruído.
Boa noite, escritor, daqui e dali, como se fosse– eé– uma vila do interior