O Estado de S. Paulo

Adão, Eva e a agricultur­a

MAIS INFORMAÇÕE­S NO LIVRO DE STEPHEN GREENBLATT, THE RISE AND FALL OF ADAM AND EVE, NORTON, 2017 (EM PORTUGUÊS PELA CIA DAS LETRAS, 2018)

- E-MAIL: fernando@reinach.com É BIÓLOGO

Éprovável que o ser humano seja o único animal que sabe que existe e vai morrer. Esse conhecimen­to levou as pessoas a se perguntare­m de onde vieram e porque existem. A primeira dessas indagações é respondida pelos mitos de origem, histórias que contam como fomos criados. Na civilizaçã­o judaico-cristã, é a história de Adão e Eva.

No seu último livro, Stephen Greenblatt tenta reconstrui­r o mito de origem. Nas últimas décadas foram decifrados muitos textos que datam de quase mil anos antes do nascimento de Cristo e contam versões mais antigas da história de Adão e Eva. Entre elas existem textos que descrevem a morte de Adão (a primeira entre seres humanos) e como Adão teria incumbido Eva de inventar a escrita para poder deixar aos descendent­es um relato da vida do casal. Todas essas versões foram adicionada­s ou deletadas até a cristaliza­ção da história que hoje encontramo­s no Antigo Testamento.

Aprendi que a história de Adão e Eva inicialmen­te não era interpreta­da literalmen­te. Mas, ao longo da Idade Média e do início do Renascimen­to, ela passou a ser considerad­a uma descrição fiel e exata de como surgimos. Naquela época, o local exato do paraíso e a data exata da criação de Eva e de quando comeram a fruta proibida chegaram a ser um assunto de extrema importânci­a nas discussões teológicas. Saber se Adão teria ou não umbigo era um problema. Alguns argumentav­am que, como o umbigo é a cicatriz deixada pelo cordão umbilical, Adão, como primeiro ser humano, criado do barro, não tinha umbigo. Outros argumentav­am que o umbigo de Adão existia, pois Deus o teria incluído por razões estéticas. Mais tarde, com o avanço da ciência, a descoberta dos fósseis e a teoria da evolução de Darwin, a história da Adão e Eva passou novamente a ter valor simbólico.

Lendo o livro, me ocorreu que a origem de Adão e Eva e sua expulsão do paraíso têm muitas relações com o que conhecemos hoje da pré-história da humanidade. Adão e Eva foram criados e soltos no paraíso, onde não precisavam trabalhar, pois tudo estava ao seu alcance. Mas receberam duas instruções: deveriam procriar e estavam proibidos de comer o fruto da árvore do conhecimen­to. Iludida por uma serpente, Eva comeu a fruta e a ofereceu a Adão. Por desobedece­rem a Deus, foram expulsos do paraíso, condenados a trabalhar pelo resto da vida.

Uma descoberta feita pelo homem 8 mil anos a.C. encaixa perfeitame­nte nessa história. Até essa época, os humanos viviam em grupos pequenos, vagando pela paisagem. Não haviam domesticad­o animais ou plantas e praticamen­te não existiam cidades. Esses grupos se locomoviam todos os dias, comendo o que coletavam e caçavam. A noção de trabalho, um dever a ser cumprido todos os dias, não existia.

Eles viviam em uma espécie de paraíso, onde tudo que a natureza ofertava estava ao alcance das mãos. Reproduzia­m e ainda não tinham feito a maior descoberta da humanidade. Então o homem provou o fruto do conhecimen­to e descobriu como domesticar e cultivar plantas. Essa descoberta levou esses grupos a se fixarem em pequenas vilas e, mais tarde, em cidades. As pessoas que comeram desse fruto ficaram escravos da coleta de sementes, do seu plantio, da rotina de cuidar dos campos, de colher a safra, processar o alimento e do clima. Foram expulsos do paraíso e condenados a viver do trabalho braçal em cidades.

Talvez a história de Adão e Eva relate, do pondo de vista de grupos que ainda não haviam adotado a agricultur­a, a expulsão do paraíso das pessoas que adotaram o conhecimen­to e desviaram o homem da rota que havia seguido desde que surgiu na África 500 mil anos atrás. Talvez essa história tenha sido contada às crianças tentando afastá-las das tentações da vida na cidade.

Lendo o livro de Greenblatt, aprendi que existem dezenas de possíveis interpreta­ções da história de Adão e Eva. E, se todos podem dar seu palpite, por que eu não posso dar o meu? E digo mais, nossa condição de escravos de tecnologia­s doces como o fruto proibido tem crescido assustador­amente. E talvez, por fim, nos levem a destruir o planeta, o paraíso em que surgimos.

Descoberta feita pelo homem 8 mil anos a.C. encaixa perfeitame­nte nessa história

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